No Egito, a grande deusa Isis, deusa do amor e da Grande Mãe – que inspirou tantas deusas da antiguidade e até mesmo as imagens das nossas virgens cristãs – recebeu o apelido de “Deusa dos mil nomes” pelas infinitas formas que o amor e a vida assumem para se expressarem, e também por causa da grande variedade de nomes e modos pelos quais a Mãe do Mundo era adorada. O hieróglifo de Isis, formado pelo seu Trono-Escada (Rainha de tudo que tem vida, e caminho da ascensão das almas a Deus), pelo ovo (pois como este oculta e estimula a vida) e um semicírculo que representa tudo o que é feminino (imaginamos que o outro semicírculo seria masculino); incluiu os elementos fundamentais. Mas então, os epítetos e atributos desta Deusa e as suas variantes abrem-se com a mesma profusão que os ramos da Árvore da Vida que é.
Na Índia, a partir do período chamado pós-védico, encontramos, na sua literatura sagrada, extensas enumerações de nomes e epítetos dos seus deuses, que são, geralmente, chamados de “sahasranama” (literalmente “mil nomes”). Frequentemente existem 1008, ou 1033 nomes de um Deus, escritos sem explicações, um nome após o outro, até ao fim. No pensamento Indo-europeu, como vemos, por exemplo, na Ilíada, é normal ver o nome de Deus acompanhado por vários epítetos que pertencem, muitas vezes exclusivamente, apenas a esse Deus ou herói, como Hebe, “a das sandálias de ouro “, ou Aquiles, “o dos pés velozes”, ou Afrodite, “a do trono de rosas”, etc. O primeiro sahasranama e o mais famoso é o de Vishnu, que aparece no Mahabharata, uma enumeração de mil nomes que é uma joia filosófica (e esotérica) porque, se Vishnu é o poder conservador da natureza, que é a Vida Universal, “que tudo preenche” (Vish), estes milhares de nomes são os atributos desta mesma Vida Una ou Luz Espírito-Matéria que na sua infinitude, enche os recetáculos dos infinitos seres vivos. O grande filósofo Vedântico Shankaracharya, fez apenas o seu primeiro comentário sobre o texto de Vyasa, explicando um por um todos os nomes deste Deus que juntamente com Brahma e Shiva formam a Trimurti Hindu.
Posteriormente ao mencionado no Mahabharata, do deus Vishnu, temos, por exemplo, o sahasranama de Lalita – literalmente “a que joga”, uma das formas de Parvati, a deusa consorte Shakti ou energia de Shiva- escrito no Brahmanda Purana, ou o sahasranama de Shiva no Mahabharata (livro XIII), ou o dedicado ao Deus da Sabedoria “que remove obstáculos” Senhor dos exércitos celestiais, Ganesha, o da cabeça de elefante. Também a seu irmão, o deus da guerra, Karttikeya, associado às Plêiades, ou, até mesmo, não só a deuses, mas também às suas encarnações ou avataras na Terra, como o sahasranama dedicado a Narasimha (“homem-leão”) um avatara de Vishnu.
A enumeração pode ser cantada ou recitada, mesmo nos rituais de este deus. Exceto o mencionado do Mahabharata, pertencem ao género stotra ou devocional do período da literatura medieval e não aparecem nos primeiros textos clássicos.
Os Epítetos enquadram-se, por vezes, nas narrativas religiosas do deus em questão, ou, às vezes, são independentes, profundamente filosóficas e até mesmo esotéricas, deixando-nos espantados, como quando se chama a Lakshmi, “Senhora das Abelhas”, “Eixo do Mundo” ou “Aquela que está no meio da batalha”, ou “aquela que faz nascer as estrelas do seu coração”.
Desta deusa, Lakshmi, há pelo menos dois sahasranama, um no Padma Purana [1] (Padma significa “Lotus” e é precisamente um dos nomes da Deusa do Amor) e outro no Skanda Purana (associado ao deus da Guerra, pelo que assume características mais shivaísticas).
Lakshmi é muito semelhante à deusa grega do amor, Afrodite, e à semelhança desta, também nasceu da espuma do mar. Ela, Lakshmi, transforma a espuma do mar em leite, quando os deuses e os asuras (os anti-deuses ou titãs) bateram as águas primordiais numa espécie de ritual para obter armas mágicas e tesouros divinos (o chamado Shamudra Mantana) e evitar também a destruição do mundo. Curiosamente muitos dos epítetos são idênticos aos que recebeu Afrodite na religião grega e é impossível negar uma origem Indo-europeia comum.
A raiz etimológica do seu nome é laks e laksa , que significa “conhecer”, “observar”, “perceber”, “compreender” e também “objectivo”, “finalidade”. A verdadeira fortuna e riqueza baseia-se em compreender e trabalhar em direção ao verdadeiro propósito da nossa vida. Representa também a consciência, o conhecimento, a luz interior que permite desenvolver a verdadeira condição humana ou a vocação de cada um. O nome de Sri, com o qual a Deusa também é comumente conhecida, significa “prosperidade”. Literalmente, ou etimologicamente, sri é “luz esplendente”, “radiação” e, portanto, “graça”, “esplendor”, “brilho”, “beleza”, “riqueza”, “prosperidade”, tornando-se um título de dignidade, como o Sir em inglês ou o Dom em português.
Lakshmi, além do amor, é a deusa das riquezas, do ouro e das joias, externas e internas. As suas vestes, vermelhas e douradas, referem-se à vida – vermelho, sangue – e à luz e riqueza, ao ouro, o mais nobre e mais forte de todos os metais. São mencionadas oito formas de riqueza, desde as monetárias (sinal da abundância), à pura do amor (Adi Lakshmi), passando por riquezas de continuidade (progênie, discípulos ou obras realizadas), de coragem, de fertilidade, de educação e conhecimento, de vitória e de sementes (riqueza do futuro). Ela está associada ao número 8 e à sua figura geométrica, chamada “estrela de Lakshmi”, são dois quadrados entrelaçados (uma estrela octogonal), uma figura que H.P. Blavatsky associa a Vénus e à sua influência no seu planeta irmão, a Terra. Bem, certamente Lakshmi é Vénus, o despertar da consciência humana, a luz inteligível que permite ser vivida graças a ela, a espuma branca do mar e as flores que, como as estrelas, enfeitaram a Terra com a sua beleza por dezenas de milhões de anos, quando o ser humano abriu os seus olhos para a vida, pela primeira vez consciente de si mesmo e do que o rodeava.
A sua principal festa é o Diwali, o Festival das Luzes, realizado no outono (entre meados de outubro e novembro), durante cinco dias, é o Ano Novo Hindu, um dos mais belos festivais de folclore e religião. As casas são limpas e decoradas, acendem-se as luzes dentro e fora, as pessoas enfeitam-se com as suas melhores roupas, adoram a deusa, a mais auspiciosa do panteão hindu, e os presentes são trocados entre família e amigos. Sendo ela a deusa da riqueza, estes são os melhores dias para comprar e gastar. Oferecessem-se à deusa flores, incenso e moedas e são depositados nos rios sagrados barcos de papel ou lamparinas; quanto mais longe eles chegarem, maior será a fortuna do ano. As portas e as janelas são abertas para que as bênçãos do amor e da fortuna cheguem ao coração de cada um.
Esta deusa, que é a mãe de Kama, o Amor, tem – como seu esposo Vishnu -vários avatares que encarnaram no espaço tempo dos mortais humanos: por exemplo, é a doce Sita, que acompanha Rama; e Rukmini, a amada de Krishna.
Voltando ao sahasranama de Lakshmi, e focando-nos no texto incluído no Skanda Purana, ela é chamada, entre muitos outros nomes, e sem ordem de importância
ANANTANITYA – “Sem fim e para sempre”. Pois tudo nasce no e do amor, tudo volta a ele, tudo está permanentemente nele. E a mesma coisa, se em vez de dizer Amor, dissermos “Sabedoria” ou “Vida Una” ou “Movimento”.
JANARANJANI – “A que faz as pessoas felizes”, pois representa a plenitude, a abundância, a verdadeira riqueza (do valor, da progênie, das virtudes, do conhecimento, etc.), enfim, tudo o que nos faz felizes. Lembre-se de Aristóteles, quando na Ética a Nicómaco diz que todos os seres vivos procuram a felicidade, isto é, a plenitude, e que para o ser humano a plenitude é a “sabedoria”, a luz da “compreensão”, a experiência do “significado último” da vida (três outros nomes, precisamente, desta Deusa)
MAHAMAYA – “A Grande Encantadora”, o jogo da vida e das formas que movem tudo para a frente, à procura da perfeição e da plena realização. A professora Delia Steinberg Guzmán, Mestre, com letras maiúsculas, do autor destas linhas, escreveu um livro maravilhoso sobre esse assunto, chamado, precisamente, “Os Jogos de Maya”.
KALARATRI – “A Noite e o Tempo”, uma bela maneira de mencionar a Grande Mãe ou Vida Universal, que é a matriz onde tudo nasce e se desenvolve. Lembre-se do magnífico poema de Novalis, o Hino à noite, ou Fernando Pessoa, de “Vem, Noite”, aí estão as deusas do amor, do perdão, da redenção eterna, através da qual nada cai para sempre, nada perde seu curso para sempre, há sempre um retorno ao “Grande Refúgio” de todos os seres (outro nome de Lakshmi neste sahasranama).
KAMAKSHI – “A que satisfaz todos os desejos com o olhar,” porque é a suprema beleza, o ideal que ilumina cada uma das nossas ações, o Graal da nossa existência (também chamada de “Cálice de ouro” ou “a portadora do Cálice de ouro”).
UMA ou PARVATI – “Filha da Montanha”, porque aqui a montanha ou Himavat é o que as tradições teosóficas chamam de “coração da Hierarquia” e da Pirâmide de Iniciados que, como Vênus, leva a luz de Deus aos corações humanos. Ela, a Deusa, simbolizaria a Luz que traz a sua mensagem de vida e amor, de vontade e inteligência.
LOKAMATA – “Mãe do Mundo” ou “Mãe de Todos os Lugares”, porque tudo vive nela.
VELA – “A que vive no fio do tempo” pois como o traço de uma circunferência, acolhe o tempo no seu peito e tudo o que acontece dentro dele, mas também indica o brilho e a eternidade que em tudo vive. É, como a mente, que traduz as formas da eternidade no tempo, e que leva as mensagens do tempo à vida imóvel da memória [2] , uma outra forma de eternidade, ou mesmo de essências. Assim como a espuma do mar morre na praia, esta espuma, que é um símbolo da Deusa, a vida universal atinge o reino perecível, e dele se retira, fazendo voltar os seus filhos, que são como gotas de água, para o seu peito.
ARUPA – “Sem forma”, “Sem Limites ou Definições”, como o Tao que o Lao Tsé menciona, ou como a Vida-Una, que, no entanto, converte-se em milhares de existências com as suas formas e limites.
BAHURUPA – “Aquela que assume diversas formas” ou
VISHVARUPINI – “Aquela cuja forma são todos e cada um dos seres”, de “vish” – encher.
PANCHABHUTATMICA – “A Alma dos Cinco Elementos” é a própria alma da matéria e de todas as formas que ela assume.
KRIYASHAKTI – Literalmente “Poder de Ação”. O poder da mente humana e divina que nos permite imaginar e criar, modelar a vida e as formas, vestindo-as primeiro da matéria dos nossos pensamentos e, depois, da matéria objetiva, para que se tornem fisicamente reais e sensíveis. Luz mental como poder de evocação, de criação.
SHANKYA – “Números”, porque é, como a mente, a alma dos números e, como a luz, a que nos permite discernir as formas, sombras imateriais desses mesmos números.
SHUDDA – “Pura, limpa, livre de erros, verdadeira”. O erro não está na mente, mas nas fantasias que projetamos nela. A felicidade está no amor e não nas sombras egoístas que nela projetamos.
TARA – “Estrela”, pois é a Estrela da Salvação, Vénus, a mais bela do céu noturno, a estrela do amor e da luz mental.
DHARADHARA – “Apoia a quem suporta”, isto é um dos seus significados, a “que segura a Terra”, isto é, a sua Alma. Dhara significa tanto “aquela que suporta” quanto “a Terra”.
BHAVA BANDHA VINASHINI – “A que destrói os laços da mente emocional”, porque a sabedoria faz-nos quebrar estas correntes, e o amor transmuta a emoção em sentimento puro, que não mais se limita ou se acorrenta, mas se abre como uma flor para a beleza do universo.
YUDDHA MADHYA STHITA – “A que está no meio da batalha,” como é a Glória, o Êxtase da Vitória sobre as nossas próprias limitações, é a Dama Ideal como a Dulcinea que acompanha D. Quixote nas suas aventuras e batalhas, o amor que destrói a prisão e liberta a alma.
SIMHI – “Leoa” é a Poderosa, a deusa egípcia Sekhmet, também “Leoa”, e à qual os filhos do Nilo chamavam “a mais bela das deusas”. É o poder da vida que impede que ninguém se perca, e evita-o nem que seja violentamente com as suas poderosas garras.
CHAKRADHARINI – “A que sustém a Roda”, a Roda da Ação, ou a Roda da Terra, ou a Roda do Mundo Inteiro, ou a Roda do Karma, ou a da Lei e da Justiça, pois é o espaço em que tudo gira onde se encontra o alimento e energia para continuar a girar, evoluindo.
PRATYAK – Literalmente “para trás” ou “na direção oposta” ou “Oeste”. Se está no Oeste, é Véspero, a estrela do entardecer, Vénus. Se está “para trás” vai em direção ao íntimo, ao amor, à compreensão, ao que está dentro, pois é o feminino, o interior de tudo, ela é a senhora de
intramuros. Se é “na direção oposta” é porque todos se encontram, antes ou despois, com o amor, com ele se cruzam, ele revela-lhes o sentido íntimo da vida.
DVIMATRA – “A sílaba sagrada AUM (OM) duas vezes”. OM é Deus, é o Poder da Criação (A), Sustentabilidade (U) e Destruição-Renovação (M), o Logos Platónico. “Duas vezes OM” significa que é o “Eco primordial” do poder divino, as concavidades do espaço em que reverbera, a Natureza como Espelho do Divino e que retorna a sua imagem, a Grande Matriz na qual a Voz Divina ressoa, e cujo eco é o filho, a luz, a coisa manifesta, o universo. Dvimatra também expressa o estado do sonho, o mundo interior, com imagens, o reino dos Ideais, imagens vivas, símbolos e veículos, portanto, dos Arquétipos Divinos.
TASYAI – “A Deusa que és Tu.” Pois a consciência é o eu e o tu, o espelho onde se encontra. Esta Deusa ou Amor, ou Luz Espiritual, vive na intimidade de cada ser. É também o Tu, porque é o “Duplo Luminoso” que nos faz retornar ao reino celestial. Bem, ela também é chamada de “a Deusa que ensina o caminho certo”.
HRIDISARVATARA KRUTI – “A que guarda as estrelas no seu coração”, bela metáfora, não só como a noite, o símbolo do Eterno Feminino, mas porque é o bondoso poder que faz com que todos encontrem a estrela do seu destino no seu próprio coração “O lugar onde a luz está” (outro nome, JYOTIRVIDE).
MAHANIDRA – “O Grande Sonho”, numa chave, a “morte”, o grande descanso e o voltar para a essência, o Pralaya. Noutra, a essência da vida, ou a vida da essência, porque, como disse o professor Jorge Angel Livraga, “o rio corre porque sonha que corre” e nada existe sem ter sido sonhado antes. E o Sonho da Alma do Mundo é a Vida da Natureza.
MINANETRA – Netra significa “olhos, líder, guia” e Mina, “peixe”.
Metaforicamente, olhos como peixe são as estrelas, no mar da noite. Também “peixe” é um dos mais antigos símbolos e nomes do planeta Vénus e da consciência luminosa que ele traz. Olho-peixe é Vénus, como guia ou duplo luminoso da Terra, de acordo com os antigos ensinamentos. O peixe-guia é a estrela que guia o nosso destino, é a sabedoria da luz que nos permite entender o significado de tudo. Lembre-se da famosa cena do Mahabharata pela qual Arjuna ganha Draupadi como esposa, que é o próprio fogo espiritual encarnado na forma de uma mulher. Ele tem que acertar com uma das suas flechas, a olhar através de uma lagoa que faz de espelho, no olho de um peixe que gira numa roda no alto. Bela metáfora que exigiria pelo menos um artigo inteiro para inserir suas evocações filosóficas.
Estes são apenas alguns, muito poucos, dos mil nomes com que os sábios da Índia chamaram Lakshmi, a deusa do amor. Que infinita filosofia está por detrás deste discurso de epítetos e nomes, que são como portas de ouro que nos permitem, não só aprofundar a sua literatura, mas também as profundezas de nós mesmos!
Notas:
[1] Os Puranas, literalmente, “antigos” são textos mitológicos do período Brahmanico onde estão expostos, em relação a um Deus, os processos cosmológicos, a criação do homem, genealogias divinas, lendas heroicas e eventos sob um véu alegórico quase impenetrável, de modo profuso.
[2] SMRITI, “Memória” é outro dos nomes da Deusa neste Sahasranama do Skanda Purana.