Virtudes do Eterno Feminino no Bhagavadgita 10.34

Imagen destacada Pandava

मृत्युः सर्वहरश्चाहमुद्भवश्च भविष्यताम्। कीर्तिः श्रीर्वाक्च नारीणां स्मृतिर्मेधा धृतिः क्षमा।।

Detalhe de Siddhi Lakshmi – Deusa do Poder Milagroso – Bronze do Século XVI-XVII – Museu Patan – Patan – Nepal. Imagem de Adam Jones na Flickr. Licença Attribution.

“Das mulheres, sou fama, beleza, fala, memória, prudência, firmeza e paciência.”

Assim diz o verso 34 do capítulo 10 da Bhagavadgita. O capítulo 10 é de grande beleza, pois Krishna, assumindo-se como a raiz espiritual do que existe, explica o que é em cada reino ou categoria de natureza ou pensamento. Leão entre animais, águia entre pássaros, raio entre as armas, primavera entre estações, Himalaia entre as cordilheiras, etc. Em cada uma será o sublime, como o “A” entre as letras, ou a conjunção “E” que une as coisas, ou o dual que estabelece a vida entre o cume e o vale, ou entre o Mestre e o discípulo, ou entre a morte e o eterno. Pouco antes de fazer a declaração de abertura do artigo, Krishna, que simboliza o Logos platónico (como Vishnu ou grande poder conservador e até mesmo criador e destruidor de tudo o que vive), diz que ele é a morte devoradora e o princípio gerador de tudo o que ainda não existe.

Embora o verso contenha literalmente “das mulheres” – nārīṇām – percebe-se que não se trata de nomes de pessoas, mas das qualidades ou virtudes femininas. São, pois, as que conferem perfeição à alma humana, embora, numa certa interpretação, possam ser as “pedras preciosas” da coroa da mulher como tal. Inclusive, se formos pelo significado da palavra Shakti, que é o poder feminino e ativo de um Deus ou arquétipo, com a sua capacidade de atuar, gerar e transformar, seriam os 7 Poderes da Luz divina ou do espírito puro. Talvez uma relação também pudesse ser estabelecida com os 7 planetas da Astrologia Védica (e incluindo o Sol-Surya, entre eles, juntamente com Mercúrio-Buda, Vénus-Shukra, Lua-Chandra, Marte-Kartikeya, Júpiter-Brihaspati e Saturno-Shani). Estes planetas, e o Sol, seriam os canais – e, portanto, femininos – da sua ação e poder, como os órgãos da vitalidade humana, mas numa escala solar.

Krishna e as Gopis se abrigam da chuva. Imagem de domínio público.

Ao traduzir este verso, não conseguimos ter todas as palavras no feminino (teríamos conseguido se, ao invés de “discurso”, tivéssemos usado “oratória”). Porém, em sânscrito, elas estão no feminino, como nos diz o nosso querido amigo e sanscritista Ricardo Martins, nas notas da sua tradução da Bhagavadgita, a qual estou a seguir.

O grande Shankaracharya, comentando este verso, pouco disse, apenas fazendo como se Krishna dissesse:

“Eu sou essas excelentes feminilidades; ao possuir um único traço delas, podemos considerar-nos bem-sucedidos.”

E Ramanuja especifica que elas representam “deusas que são os poderes do Senhor”.

Prabhupada chama-as de “as 7 opulências” e diz, redundantemente, que, se um ser-humano possui todas ou algumas delas, pode ser chamado de glorioso.

Chaitanya Charan diz que elas são, na cosmologia védica, as “esposas do Dharma”, e que, quando alguém segue o Dharma, essas qualidades naturalmente começam a florescer nele.

Analisemos essas virtudes, uma a uma, examinando detalhadamente as palavras sanscríticas que são os seus nomes, e lembrando que o verso da Bhagavadgita é:

kīrtiḥ śrīrvākca nārīṇāṃ smṛtirmedhā dhṛtiḥ kṣamā:

KIRTIH

Significa “fama, reconhecimento, glória”, até mesmo “extensão, expansão, palavra, luz, som”, o fato de ser mencionado em louvor por outro, e o oposto de “humilhação”.

Também uma boa maneira de expressar o Eterno Feminino, que se expande para preencher o espaço com vida e luz, ou como o ar que preenche todo o continente em que está, ou como a água que se adapta facilmente à forma como derrama, mas sem nunca perder a horizontal, o símbolo geométrico que expressa a Grande Mãe, e como virtude a equanimidade.

O masculino avança e conquista, e desaparece; o feminino irradia para o espaço o seu nome, a sua luz e beleza, e a sua proteção, e espera.

SRIH

Imagem da Deusa Laxmi, a Deusa Hindu da riqueza e da prosperidade. Creative Commons.

“Prosperidade, fortuna, riqueza, beleza, esplendor, graça” sendo o epíteto da Deusa Lakhsmi, a deusa do Amor e as 8 formas de riqueza (de obras, filhos, conhecimento, renome, etc.). Atribui-se à etimologia de “queimar, irradiar luz”. A mulher é sempre o fogo do lar, o sentido de união, a sua graça. O feminino dá sempre o sentido de lar, porque é a “concavidade que retém a vida” em todos os planos de consciência. E o lar não tem de ser a casa; pode ser o mundo inteiro, mas neste caso o mundo inteiro torna-se no lar, como o feminino faz seu lar a Escola, o Hospital, etc.; sempre onde está.

VACH

Sarasvati com sua cítara e pavão. Imagem Creative Commons.

É a linguagem, a palavra, o discurso. E aparece como uma forma da deusa Sarasvati, o discurso musical das águas que correm, em todos os planos de consciência, incluindo os rios cósmicos que fertilizam o próprio espaço. Pois o discurso é como um rio que fertiliza o silêncio com as ideias da mente; especialmente se for o discurso belo, justo, nobre, aquele sobre o qual o Dhammapada diz “melhor que mil palavras vãs, é aquela que vai curar e devolver a esperança a quem a ouça”.

Assim como a lógica, com as suas estruturas geométricas ou às vezes simplesmente quadradas, é masculina, quando se torna o suporte de ideias, dos sentimentos, da necessidade de unir em virtude da palavra (esse é o sentido da comunicação), essa música é puramente feminina. Porque se adapta e transforma, cheia de vida, dança com o ritmo da linguagem, que dá corpo e vestimenta ao pensamento. O mesmo cérebro chamado “feminino” incorpora a linguagem, que é a necessidade de criar laços para dar vida. O pensamento, a linguagem e a ação formam um poder trino que segue o modelo: pai-mãe-filho. A linguagem, como um barco de mentes e sons, é também portadora do fogo sagrado, que sem ele se apagaria no mar da matéria ou na própria noite do mistério sem fim.

SMRTI

Krishna adornando o cabelo de Radha em um bosque isolado. Imagem de domínio público.

“Memória, aquilo que é – ou deveria ser – lembrado, plenitude mental.” Porque a mulher é a guardiã da tradição, da memória; ela recorda-a ao marido, ensina-a ao filho e ao neto, recebe-a do pai; portanto, nela reside o poder da educação. Ela é a que conserva, como o mar que retém no seu seio todas as formas de vida; e a Terra, como a Grande Mãe, da mesma forma; ou a Luz astral, que guarda as formas nela impressas, como novas sementes do Karma; ou o solo, que abriga as sementes nele depositadas e que dele mesmo crescerão. Também no Egipto encontramos a deusa da Memória, Seshat, que forma um casal com Thoth, a Inteligência, pois ambas devem estar sempre unidas; caso contrário, a memória torna-se numa prisão e a inteligência, sem ela, não tem onde fixar-se e, volátil, desaparece. Neste verso, depois da “memória” vem, precisamente, a “inteligência” (medha).

MEDHA

“Inteligência, sabedoria.” Com um “a” curto no final, em vez de longo, significa “sacrifício”, o que contribui para uma interessante equação filosófica. Lembremo-nos que também na Bhagavadgita se ensina que, de todos os sacrifícios, o melhor é aquele que nos torna mais sábios. Esta “equação” também faz de Medha a esposa de Agni, o fogo do espírito cuja radiação, depois de consumir a vítima (a madeira do conhecimento ou da experiência), a transforma na luz da sabedoria.

Na Pistis Sophia gnóstica, Ela é aquela que desce ao abismo e o vivifica até que o Cristo-Eros a resgate e suba ao topo. A sabedoria é a morada do real, o espaço em que vive aquilo que já não pode ser ferido pelo tempo. Em sânscrito também é chamado de “budhi”, como a luz espiritual. E assim como Maat (Sabedoria-Justiça) nasce de Ra (o Rei, o Eu), ela é irradiada de Atma (a Auto-Vontade) e torna-se seu veículo, à medida que o gelo transformado em água se torna o veículo da geleira, e então torna-se a vida de tudo o que cresce nela, já quente (aí a Sabedoria torna-se Amor e Vida).

DHRTIH

“Determinação, firmeza, perseverança” e também “paciência” para alcançar um objetivo. E todos sabemos que a capacidade de amar de uma mulher geralmente é inflexível, uma vez que ela sabe o que quer. Tende para um centro único que tinge toda a sua vida com esse afeto; o amor não está na sua vida, o amor é a sua vida; e a partir daí a flecha de Eros vai sempre em direção ao alvo. Esta virtude é considerada um dos Yamas ou formas de retidão no caminho da consciência, a unidade do propósito. Se queremos aprender firmeza, determinação, prestemos atenção a como o feminino ama. Na Bhagavadgita ele menciona que tal firmeza e determinação (drtri) podem não ser iluminadas pela luz do espírito (budhi, do qual constitui seu reflexo natural) e serem vítimas do desejo e ambição (rajas) ou da cegueira interior e desajustada (tamas). Mas isto deve-se à relação desta senhora-virtude com as condições mais obscuras da matéria. Quando levanta voo – e mais cedo ou mais tarde o fará – esta determinação e firmeza tornam-se uma com a própria sabedoria.

KSAMA

Bhumi – Hindu Earth Goddess.

Paciência (dita especificamente da Terra, Bhumi, com as suas criaturas, isto é, da mãe com os seus filhos), perdão, tolerância, submissão (no sentido da água que se adapta à forma que nela entra, mas que ninguém pode fazê-la mudar a sua natureza ao pressioná-la).

E pode haver uma virtude mais feminina do que esta, e no sentido de “A quem Deus a der, que São Pedro a abençoe”?

O poeta Fernando Pessoa, num belo poema, que mais parece um hino órfico à Noite, mergulhou neste mistério:

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio. Noite

Com as estrelas lantejoulas rápidas

No teu vestido franjado de Infinito.

(…)

Vem soleníssima,

Soleníssima e cheia

De uma oculta vontade de soluçar,

Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.

E todos os gestos não saem do nosso corpo

E só alcançamos onde o nosso braço chega,

E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Veja, doloroso,

Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,

Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,

Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.

Sabor da água sobre os lábios secos dos cansados.

Pois a Grande Mãe é, como se diz de Lakshmi e da Terra, “a que apoia os que apoiam”; por isso a sua paciência é infinita; e é infinito o seu esquecimento dos erros e ofensas. Porque, se o Karma não perdoa, é para evitar que nos percamos nos caminhos do Nada; mas o Eterno Feminino, a Grande Mãe, nunca para de esperar o melhor, a vitória, a realização de seus filhos.

José Carlos Fernández

Lisboa abril 7, 2023  

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