Dificilmente existe uma criança que não tenha olhado para nuvens e as visse arranjando-se como terraços e parques, como colinas e fortalezas. Às vezes as nuvens assumem a forma de enormes animais, às vezes de monstruosos rostos. Quando a nossa imaginação trabalha desta maneira, todas as nuvens são sugestivas de alguma forma sólida. Tal imaginação não é mera infantilidade; a perspectiva nas nuvens vividamente nos recorda objectos que vimos. Esta sugestibilidade nas nuvens foi experienciada pela maioria de nós como crianças.
Obviamente, alguma faculdade imaginativa é necessária numa criança para ver uma massa de névoa como uma coisa viva sólida. Mas a quantidade de imaginação não é muito grande. Ainda assim, seja qual for a quantidade que possuímos quando crianças, geralmente perdemos muito, se não tudo, mais tarde. Se, no entanto, à medida que crescemos, a nossa educação não é apenas uma questão de nos suprimir e colar rótulos em nós, mas nos abriu aqui e ali vislumbres de um mundo que não é puramente material, então nossa imaginação revive, e mais uma vez os objectos materiais começam a assumir um carácter simbólico. De facto, pode dizer-se verdadeiramente que quanto mais educado um homem é, mais simbolicamente ele vê a vida. A vida para o homem culto é sempre sugestiva. Mas de quê?
Há um bosque aqui perto e todos os dias passo por ele. Há alguns dias em que o ar está parado e cada árvore é como uma sentinela. Enquanto olho, ocorre uma mudança na minha mente e, de repente, é como se as árvores, a luz brincando em seu redor, o céu visto através delas, tudo se tornasse uma janela através da qual olho para algo. As paisagens têm sempre este efeito sobre mim; a minha mente fica parada, de modo que a faculdade de pensar está tensa, mas não pensa. Quero pensar, mas não sei o que pensar, porque o que se apresenta diante da minha mente não pode ser claramente expresso em termos de pensamento. Para o que é que olho, por esta janela que é a paisagem?
Um efeito bastante diferente é produzido em muitas pessoas à beira-mar. Para Byron, que era uma típica alma do mar, o mar – não plácido, mas com grandes ondas – era como uma mãe poderosa que ternamente acalmava a sua natureza e o acariciava. Para muitos, especialmente nas terras do norte, o mar é como um rosto, cuja visão traz uma regeneração em pureza e força. Não há nada para eles tão animador quanto estar à beira-mar, as ondas furiosas diante deles, o vento da tempestade quase desfazendo-os; toda aquela fúria é para eles um grande bálsamo.
Diferentes destes são as almas da montanha. Ao primeiro vislumbre das colinas, é como se uma grande mortalha que oprimia a vida fosse removida. Elas começam a respirar sem sufoco; é como se ouvissem vozes que falam da força ilimitada e da paz dos tempos. A tempestade e o stress da vida que as cercava nas planícies orientam-se de uma nova maneira entre as montanhas, de modo a tornar a vida mais suportável. Há mais vida para elas viverem, porque as montanhas a dão.
Mares, paisagens e montanhas podem tornar-se janelas para olhar para outro mundo. Os seus amantes necessariamente não podem descrever esse outro mundo excepto em termos deste. Mas se uma coisa eles sabem com precisão, é que esse mundo não é este. A sua grande descoberta reside exactamente nessa distinção; para eles, a realização da vida é escapar deste mundo para esse outro. Não que este mundo de tarefas diárias não seja real; mas a sua realidade é derivada, não intrínseca. Torna-se amplamente simbólico. Mas, mais uma vez, simbólico de quê?
É para esse misterioso outro mundo que a vida constantemente nos constrange. Não somos levados a ele gentilmente, nem seduzidos para ele com lisonjas. Com a maioria de nós, a vida fere-nos uma e outra vez, até abrirmos os nossos olhos para aquele outro mundo. Certamente há muitos na terra tão terrenos que se recusam a erguer os olhos do mundo dos sentidos para um mundo supra-sensível. Mas eles são como calos no tegumento da vida, e as energias subtis da vida curvam-se em seu redor e deixam-os à sua materialidade. Esquecendo estes como falhas temporárias da vida, descobrimos que a maioria dos homens muda da infância para a velhice, não apenas fisicamente, mas também na sua resposta ao ambiente invisível. Essa mudança consiste principalmente em ver ou sentir outro mundo através deste mundo.
Claro que pessoas profundamente religiosas prontamente tecem as cores do céu em volta das sombras da terra. Mas o céu teológico não é o único aspecto do mundo do além. Quando um poeta olha para uma concha do náutilo e ali vê “mansões imponentes” para a alma, ele olha através da concha para um mundo de maior realidade. O mundo do poeta tem uma qualidade de realidade comparada com a qual cataratas e serras são feitas de meros sonhos. Todas as artes são uma declaração para nós do mundo além, em termos do nosso mundo. Não há necessidade de rotular esse outro mundo; os rótulos nada transmitem àquele que ainda não o descobriu. O Céu, o Mundo Numenal, Avyaktam, o Belo, estes e outros são rótulos que usamos; mas a realidade transmitida por eles existe apenas para aquele que a encontrou por experiência directa.
Talvez aquela arte entre as artes que leva aos mais altos níveis de simbolismo seja a música. Não há janela como a da música para contemplar aquele mundo além. É um mundo que confunde a afirmação. Uma frase musical sugere isso; uma sinfonia dá uma mensagem a respeito. Mas nós o nomeamos erradamente se usarmos os nossos termos musicais para a sua natureza. Uma frase triste na música, enquanto sintetiza todas as tristezas dos homens, fala-nos de algo para o qual nosso rótulo é tristeza, mas que, pela sua natureza intrínseca, não é tristeza de facto. O que é, as faculdades do homem não podem compreender. A morte de Napoleão pode ter sido o estímulo para Beethoven criar a marcha fúnebre na Sinfonia Eroica, mas a marcha não nos fala da morte de nenhum herói, nem de qualquer forma de morte. Fala-nos de um mundo totalmente diferente do nosso mundo, do qual contactamos apenas um fragmento por um tentáculo nosso que chamamos de ‘pesar’. O mesmo sucede com todos os humores do coração e da mente retratados na música. A música não expressa os nossos estados de espírito, nem mesmo nas suas formas sublimadas. A música descreve seu próprio mundo, e os nossos humores com seus rótulos humanos são apenas as pontes a serem cruzadas para o mundo da música. Mas uma ponte não é a outra margem.
Assim são todas as nossas experiências. Elas são apenas pontes do mundo dos sentidos para um mundo supersensível. É apenas o homem de muitas pontes que vive para algum propósito verdadeiro. Livros, religiões, filosofias, ciências e artes – mais ainda, as nossas próprias tristezas – para que servem senão para construir pontes?
Exige uma vigilância constante sobre si mesmo para não ficar tão preso à mera ocupação de viver e se esqueça da verdadeira ocupação da alma, que é construir pontes. Chega a hora em que o corpo se desgasta, os sentidos ficam embotados e a ocupação de vida se afrouxa. Então, apenas uma actividade torna a vida suportável; é atravessar e novamente atravessar as nossas pontes, até nos familiarizarmos tanto com o mundo além que esperamos ansiosamente o dia em que não haverá retorno após a travessia. Mesmo muito antes desse dia, se formos construtores de pontes experientes, a proximidade e a preciosidade desse outro mundo assombra-nos noite e dia, tornando a vida longe dele uma perpétua melancolia.
Viver devemos, neste mundo dos cinco sentidos. No entanto, poucos sabem como viver. Eles apegam-se à coisa e perdem o símbolo transmitido por ela. O amigo, no seu corpo de carne, de tantas libras avoirdupois, é real para eles; o pensamento em si do amigo não é suficiente. Eles pensam que vêem o amigo ao olhar o seu rosto; eles não sabem que símbolo maravilhoso ele se torna quando o corpo é substituído pelo pensamento, e quanto mais simbólico ele se torna, mais dele é auto-revelador.
Ao longo de todos os nossos dias, é esta qualidade simbólica da vida que é o único refúgio de felicidade e paz. Pois as coisas do nosso mundo são transitórias, e a praga do tempo cobre todas elas. Mas se vimos aquele outro mundo, então o desaparecimento de tudo o que faz a vida “valer a pena”, como os homens chamam de vida, não é uma perda, mas um ganho. Pois lentamente esse mundo transcendental se torna nosso – aquele mundo de coisas eternas e infinitas que nunca podem nos deixar, porque nos tornamos um com elas.Fosse eu o guardião do portão do céu e as almas chegassem a esse lugar de paz e bem-aventurança finais, eu perguntaria a cada alma: ‘O que trazes tu?’ Se a resposta fosse, ‘Eu trago o mundo dos Vedas – ou da Bíblia – ou do Alcorão’, eu não abriria. Mas se a resposta fosse: ‘Eu trago o meu mundo’, eu faria mais uma pergunta: ‘O que é verdade no teu mundo?’ E se a resposta fosse: ‘Esse é o meu mistério’, eu abriria o portão do céu e diria: ‘Passa, irmão, tu encontraste.’