Em 2009, Lionel Tardif, cineasta, historiador, professor de linguagem cinematográfica, diretor de produção e escritor, deu uma conferência sobre Sri Aurobindo, personagem fora do comum cujos ensinamentos e obras são um verdadeiro tesouro para a evolução da humanidade. A revista Acropolis publica o texto na íntegra dessa conferência que se dividiu em vários artigos.
Num primeiro artigo, o autor dá prioridade à juventude de Sri Aurobindo.
No final do século XIX e primeira metade do século XX, um homem reencontrando e principalmente repetindo a experiência, deixou-nos uma ciência de sempre, de aqui e agora e para amanhã. Outros grandes seres antes dele já a tinham abordado, mas sem nos deixarem o segredo do processo. Sri Aurobindo ensinou-no-la com a sua vida e o seu corpo. Por que razão, então, um mestre desta envergadura, o maior, com certeza, que o século XX conheceu, permanece quase um desconhecido? Enquanto era vivo, Sri Aurobindo Ghose já tinha dado a resposta: “nem vocês nem ninguém sabe nada da minha vida. Nada aconteceu na superfície que os homens possam ver”.
Porém, esse trabalho celular, tão solitário e tão primordial para o futuro da humanidade, continua hoje em silêncio. Não penso que aqueles que o fizeram sob diferentes formas sejam numerosos, mas o principal é que se continue. Ninguém, ou quase ninguém, o vê e ainda menos se fala dele. Numa época em que a imagem e a representação predominam, apenas é difundido pelos media aquilo que é exibido, faz muito ruído, choca, interpela, ilude, ainda que na maior parte do tempo, isso não dure mais que um instante.
Uma obra abundante e fundamental
Para evocar Sri Aurobindo, as minhas pesquisas apoiam-se por um lado nos seus textos, nos de A Mãe, dos quais o famoso Agenda, de Satprem e na tese de Printhwindra Mukherjee (1), aluno do ashram, defendida na Sorbonne sob orientação de Raymond Aron (2). Quem é Sri Aurobindo? Nem Nirodbaran, o seu secretário particular que foi a última testemunha, nem Satprem (3), desaparecido há quase dois anos, estão cá para falar do Mestre, mas este último, felizmente, deixou-nos obras importantes sobre o trabalho de Sri Aurobindo e de A Mãe. Sri Aurobindo, ele próprio, escreveu obras fundamentais, durante a sua vida ou então publicadas após a sua morte:
O Yoga da Bhagavad Gita, As bases do Yoga, A Manifestação supramental na Terra, A evolução futura da humanidade, O Ciclo humano, A Aventura da Consciência, A vida divina, um poema deslumbrante e único de uma beleza intemporal, Savitri, e outros ainda.
Uma criança precoce, dotada para os estudos.
Sri Aurobindo Ghose nasceu a 15 de agosto de 1872 em Calcutá. Era o penúltimo de uma família de quatro filhos, cujo pai era cirurgião, Krishnadan Ghose, apelidado, pelas suas posições, de “o príncipe dos ateus”. Desde os cinco anos, Sri Aurobindo e os seus dois irmãos mais velhos (a criança mais nova sendo uma menina) estavam no internato de Loretto em Darjeeling, bem longe de Calcutá. Desde a sua mais tenra infância, o pai havia banido a língua materna, o bengali, a favor do inglês. Depois de a família Ghose se instalar em Inglaterra em 1879, o pai confiou os seus três filhos a um pastor de Manchester, com duas proibições: nenhuma instrução religiosa nem qualquer influência indiana. Desde os sete anos de idade, Sri Aurobindo tomou gosto pelas literaturas latinas, inglesas e francesas em texto. Desde essa idade, ele escrevia poemas. Ele impressionou tanto o seu professor que saltou vários anos de escola e teve aulas intensivas de grego, começou a ler Dante e Gœthe, sempre em texto. Após Manchester, ele entrou no King’s College de Cambridge. Ele praticava, diria o reitor, a língua de Shakespeare com uma facilidade de longe melhor do que a da maior parte dos jovens ingleses.
Em 1890, aos dezoito anos, foi aceite como estagiário num invejado concurso para administradores na Índia. Rapidamente e já em Inglaterra, ele apercebeu-se das insuficiências e dos vícios do regime da Coroa no seu país. Desde os onze anos de idade, um sopro revolucionário corria nele, a cabeça ressoando com sotaques de Joana d’Arc, de Mazzini (4) e dos heróis revolucionários de América, da Escócia e de outros locais. Mais tarde, o lugar de administrador foi-lhe recusado sob um pretexto fútil, mas na realidade, o escritório dos Assuntos coloniais em Londres tinha concluído que já se tratava de um assunto delicado. Foi então colocado pelo Maharaja de Baroda (Estado do Gujarat na Índia), como professor no colégio universitário do principado e conselheiro do Mahârada aos vinte e um anos. Ele mostrou rapidamente uma indiferença total pelo dinheiro e pela contabilidade. “É Deus – dizia ele – que guarda a minha conta “. Era um bulímico da leitura. Era capaz de ler uma centena de páginas em meia hora e lia uma caixa de livros em tempo recorde porque ele conseguia ler também durante noites inteiras. Um dia, tendo-o visto folhear um livro a uma velocidade incrível, um observador pegou nesse livro, abriu-o ao acaso, leu uma linha em voz alta e pediu-lhe que recitasse o resto. Sri Aurobindo concentrou-se durante um momento e repetiu a página toda sem o mais pequeno erro.
De verão ou de inverno, apesar das temperaturas extremas, ele vestia-se com um simples tecido de algodão e dormia num tapete de fibras, no chão. Desde a sua tenra idade, o seu ascetismo manifestou-se e fez voto de castidade. Para recuperar o tempo perdido devido ao pai, impôs a si próprio com o maior rigor o estudo dos grandes textos da espiritualidade indiana.
Defender os que sofrem
Foi-lhe oferecido, naquela época, uma tribuna regular no Hindu-prakash de Puna. À leitura dos primeiros artigos, o diretor do jornal preocupou-se com o seu tom extremista e com o cheiro da sedição das suas frases. Mas isso interessou rapidamente os Radicais que se opunham à política levada a cabo pelos ingleses na Índia, e ele foi apresentado a Bal Gangadhar Tilak (5), grande figura venerada do povo.
Também naquela época, medindo a sua solidão, casou-se com Mrinâlini, filha de Bhûpal Chandra Bose, que tinha treze anos. O casamento teve lugar em Calcutá, em 1901, quando ele tinha 29 anos. Os primeiros meses foram difíceis porque Sarojini, a irmã de Aurobindo, dez anos mais velha que Mrinâlini, tinha tendência a encarar esta última com algum ciúme. A esposa queixava-se ao marido, que lhe retorquiu que fosse paciente porque não se podia mudar um comportamento tirânico de um dia para o outro. Mrinâlini só em raras ocasiões viveu algum tempo seguido com o marido, que tinha, porém, um profundo respeito e amor por ela. Estas confidências foram reveladas pelo próprio escriba de Aurobindo, Nirodbaran. Nesta carta dirigida a Mrinâlini em 1905, Aurobindo informou-o dos seus compromissos: “Acabo de me aperceber que até hoje, vivi como um animal e um ladrão. Por estes tempos duros, todo o país bate à minha porta, neste país tenho trezentos milhões de irmãos e irmãs dos quais grande número morre de fome, a maior parte sobrevive, dominada pela miséria e o sofrimento: tenho que os aliviar”. “e uma segunda loucura apoderou-se de mim: encontrar o Divino pessoalmente, de alguma forma. Se Deus existe, deve haver uma via algures para sentir essa existência, para a encontrar. As sagradas escrituras dos hindus atestam que essa via se esconde dentro do nosso corpo, até dentro do nosso espírito. Neste momento, espero levar-te, a ti também, nessa jornada”. A passagem desta carta é uma forte prova de amor de Aurobindo pela sua mulher: um amor que ele colocava nas alturas do coração e do espírito. “Percebi que nada mais há a fazer a não ser meditar sobre o Divino todos os dias durante meia hora, apresentar-lhe um desejo ardente na forma de oração”. Quando ele escreveu esta carta a Mrinâlini, ele tinha a idade de Cristo antes do seu desaparecimento, ou seja, 33 anos. Tal como os maiores Mestres, Sri Aurobindo percebeu com essa idade que um yoga que exigisse o abandono do mundo não era feito para ele: “uma saudação solitária que deixa o mundo entregue a si próprio é uma coisa quase repugnante”.
Então aprendeu a controlar a respiração, o prânâyâma (6), graças a um amigo engenheiro que frequentava o grande iniciado Swami Brahmânanda (7) e isso durante horas inteiras. Esse exercício trará uma tremenda luminosidade mental a Sri Aurobindo.
Desde o seu regresso à Índia, era de facto surpreendente a forma dócil com que o seu organismo físico se adaptava constantemente às mudanças bruscas de clima assim como o ritmo cada vez mais frenético da sua vida.
Um espírito nacionalista
Em julho de 1906, ele foi nomeado reitor fundador do National College em Calcutá e em agosto, editor-chefe do diário revolucionário Bandé mâtaram em inglês.
O ilustre Bepin Shandra Pâl atestou naquela época que “o mais jovem de entre aqueles que dirigem o movimento nacionalista na Índia, Aurobindo parece ser o mais velho de todos e pelas suas contribuições, e pela sua instrução e pela força de seu caráter: parece o enviado inspirado de Deus”. Longos extratos do Bandé mâtaram eram reproduzidos nas colunas exclusivas do Times em Londres. Os ingleses ficaram com receio. Primeiro, Lord Minto, o vice-rei da India e o secretário de estado dos assuntos indianos, o Visconde Morley, montaram uma repressão bárbara e diabolicamente, fomentaram o ódio comunitário entre hindus e muçulmanos. Aurobindo foi preso uma primeira vez em agosto de 1907, mas foi absolvido por falta de provas. O poeta Tagore repreendeu-o a brincar: “O quê? Nem uma condenação? Você dececiona-nos!” e num muito longo poema homenageou Sri Aurobindo como “portador da lâmpada de Deus, esse mensageiro temível”. Em 1908, Henry Nevison no The New Spirit in India escreveu: “acabo de provar o sabor intenso da espiritualidade na sua presença. O nacionalismo para ele é um dever que vai muito para além de qualquer objetivo político. Nos seus olhos refletia-se uma auréola celeste. Calmo, austero, numa realização profunda, indiferente a qualquer opinião e a qualquer eventualidade, ele é feito do tecido dos sonhadores, mas daqueles sonhadores que sabem um dia viver os seus sonhos, sem a preocupação dos meios utilizados”.
Num segundo artigo, Lionel Tardif abordará o encontro fundamental que aconteceu entre Sri Aurobindo e aquela que se iria tornar A Mãe.
(1) Nascido em 1936, investigador bengali, etnomusicólogo, poeta, tradutor, especialista em civilização e filosofia indianas.
(2) Raymond Claude Ferdinand Aron, filósofo, sociólogo, politólogo, historiador e jornalista francês (1905-1983)
(3) Bernard Enginger, apelidado Satprem (1923-2007), escritor francês próximo de Sri Aurobindo e de A Mãe
(4) Revolucionário e patriota italiano (1805-1872), fervoroso republicano e combatente pela realização da unidade italiana, considerado tal como Giuseppe Garibaldi, Victor-Emmanuel II e Camillo Cavour, como um dos «pais da pátria»
(5) Professor, reformador social indiano (1856-1920), militante da independência da Índia
(6) Termo sânscrito que encontramos nos Yoga Sutra de Patañjali. Quarta etapa do Yoga, pedra angular do nâtha-yoganâtha-yoga. Movimento respiratório orientado (ā-yāma) pelo canal do conhecimento e do controle da prana (pra-ana), energia vital universal
(7) Brahmananda Saraswati (1870-1953), brâmane indiano que levou uma vida de meditação e de profundo silêncio. Iniciado na ordem dos samanyasîn, ele tornou-se de seguida Shakaracharya (chefe espiritual da Índia do Norte). Foi o mestre de Maharishi Mahesh Yogi a quem pediu para difundir pelo mundo o que chamamos a Meditação Transcendental.
Obras de Sri Aurobindo:
– Le guide du Yoga, Edições Albin Michel, coleção Pocket, 2007, 275 páginas.
– Yoga de la Bhagavad Gîta, Edições Sand, 1984, 436 páginas.
– Le Yoga intégral, Edições Sri Aurobindo Ashram, 2002, 448 páginas.
– La Synthèse des Yoga, Edições Buchet/Chastel, 3 volumes :
– Le Cycle humain, Edições Buchet-Chastel, 1973, 429 páginas.
– La manifestation supramentale sur la Terre, Edições Buchet/Chastel, 1974, 168 páginas.
– La vie divine, 4 volumes, Edições Albin Michel, 1973.
– Savitri, Institut de Recherches évolutives, 1996.
– La Bhagavad-Gîtâ, Edições Albin Michel, coleção Spiritualités vivantes, 1970, 378 páginas.
Bibliografia sobre Sri Aurobindo
– Sri Aurobindo, Teilhard de Chardin, Gérard MOURGUE, edições Buchet/Chastel, 1993, 175 páginas.
– Les écrits bengalis de Sri Aurobindo (1872-1950), Edição Dervy-Livres, Coleção Mystiques et religions, 1986, 349 páginas.