… Tudo o que foi exposto anteriormente demostra sem dúvida que o que chamamos de “eu” pessoal nada mais é do que uma ilusão, ou seja, transitório e dependente.
– Mas escute, você pensa que o meu eu é ilusório, toque-me se quiser, veja, sou uma sombra ou uma miragem? Atravesse a rua sem olhar, vamos ver se o autocarro que o atropela é ilusório!
– Não se zangue, você tem razão. Este é um mal-entendido frequente; de um lado encontramos os negadores deste mundo e a sua realidade, e do outro os materialistas e racionalistas que afirmam que este mundo é a única realidade. Na verdade, toneladas de papel foram escritas com afirmações e negações sobre isso. E creio que a verdade, como já indiquei, é dupla. Certamente o eu pessoal é ilusório e transitório em relação à eternidade, mas real “neste momento” e se atravessar a rua sem olhar a sua personalidade ilusória irá chocar com o autocarro ilusório e vai fazer-se em pedaços ilusórios, terminando com a sua existência neste mundo ilusório e despedindo-se dos seus amigos e familiares ilusórios.
– Vamos ver se eu o entendo então. O nosso eu é uma realidade condicionada, transitória, como o tempo que dura um jogo numa daquelas máquinas de bar.
– Correto. É o jogo que ele jogou, o papel que tem que representa nesta obra do mundo. É impermanente, mas o resultado do jogo é verdadeiro, e a dor e a experiência adquiridas são verdadeiras.
– Experiência para quê ou para quem?
– Deixe-me explicar-lhe algo. Imagine por um momento que esse eu pessoal, além de depender e estar em relação com aspetos materiais da personalidade (lembre-se, corpo físico, vitalidade, emoções e mente?), também está relacionado com algo pertencente a um plano superior.
-Já o vejo, ligado por cima a algo externo a este plano de ilusão.
– Exatamente, então esse eu tem algo a “segurá-lo”. Se, por exemplo, quebrássemos ou modificássemos um desses lados do quadrado da personalidade, ou recebêssemos um ataque traumático de vida, essa pirâmide provavelmente oscilaria de um lado para o outro, e talvez se deformasse e até pudesse desaparecer um de seus lados na base.
-Já vejo para onde vai… mas apesar desse acidente, o eu ainda estaria ancorado em algo que está acima e fora do plano ilusório da personalidade.
– Isso mesmo, persistiria indefeso e existindo sem dependências.
– Bom, mas isso não tem nada a ver com o que o budismo tibetano ensina, ou seja, a não existência de nenhum ser ou entidade além do plano da matéria, que também inclui o mental. Ou seja, o budismo tradicional defende o mesmo que a ciência materialista.
– Certamente, esta é uma confusão frequente. Geralmente pensa-se que o budismo tibetano hoje é muito espiritual, e embora eu não vá discutir isso neste momento, a libertação nirvânica que promete é equivalente à aniquilação. Essa seita budista propaga a doutrina conhecida como “sunyatta”, ou seja, o vazio, o que significa que por trás de todos os fenómenos que percebemos neste mundo, incluindo os mentais e invisíveis, existem apenas transformações dependentes e evolutivas. Não há nenhuma base que o sustente, não há nenhum elemento separado, de facto, nenhum elemento fixo. É por isso se chama doutrina do “vazio”, por isso defende exatamente o mesmo que as doutrinas materialistas científicas.
– Então onde está a diferença?
– A única coisa que faz a diferença é uma atitude compreensiva em relação à dor humana, o seu humanismo materialista que o faz trabalhar à sua maneira pela libertação do sofrimento humano. Mas isso também existe em muitos humanistas científicos e materialistas, que também entendem que a única realidade é a dor, e que pelo meio da ciência e das revoluções económicas e materiais essa dor pode ser aliviada, mas não implica a crença em algo além do que que o assunto oferece.
Deixe-me contar uma pequena história, mas muito importante para entender tudo isto. No final do século XIX, H.P. Blavatsky recuperou elementos muito importantes da tradição dos seus mestres tibetanos, um certo grupo misterioso e secreto não bem identificado. Ela, para diferenciá-lo do budismo iniciado por Gautama Sakyamuni, o Buddha (observe o duplo “dd” do particípio passivo, “o Iluminado”) escreveu sobre o Budismo (um único “d”) ou a Doutrina Imemorial da Sabedoria (“Buddhi”). Ou seja, ciente do que iria acontecer e já estava acontecendo no seu tempo, queria separar claramente os dois conceitos, o budismo da sua época e o budismo atemporal.
– Mas para que? Qual foi o objetivo dessa insistência?
– Como ela mesma explica, o budismo do sul ou hinayana perdeu o coração da doutrina e desenvolveu uma doutrina seca e desprovida de alma, enquanto o budismo tibetano do norte ainda conservava elementos espirituais mais profundos, mas começava a mostrar sinais de algo parecido. Ela explica que o budismo imemorial e esotérico ensinava a existência em cada ser humano dos princípios espirituais imortais ou mónadas. Essas mónadas eram a causa e a origem do rosário de encarnações como personalidades ilusórias.
– Como a luz do sol que emana cada um de seus raios… foi o que você disse antes.
– Além disso, reivindicou na sua obra monumental A Doutrina Secreta, a existência de um único elemento ou princípio em todo o universo:
“… Um PRINCÍPIO Omnipotente, Eterno, Ilimitado e Imutável, sobre o qual toda especulação é impossível, porque transcende o poder da conceção humana, e só poderia ser ofuscado por qualquer expressão ou comparação da inteligência humana. Está fora do alcance do pensamento, e de acordo com as palavras do Mândûkya Upanishad é “inconcebível e inefável” … Há Uma Realidade Absoluta anterior a cada Ser manifestado e condicionado …”
Vejo que vai me perguntar aonde leva tudo isto. Essas duas afirmações, a existência “dos raios” do sol, ou seja, da mónada imortal que ilumina as personalidades passageiras – lembra do gancho ao qual se liga o eu ilusório? ─ e a segunda afirmação a existência de um plano omnipotente, eterno, ilimitado e imutável, além das aparências deste mundo, repito, estas duas afirmações são fundamentais, e são também a diferença fundamental com o budismo tibetano de hoje que nega que exista nada além das multiformes aparências deste mundo, isto é, a doutrina do vazio. Infelizmente, a maioria das pessoas não conhece ou não entende esse aspeto do budismo tibetano moderno.
– Mas como é isso possível? Eu pensava que a sua crença em princípios subtis, na reencarnação, na meditação espiritual, todos eles eram indicativos de um conceito espiritualista.
– Bom, lamento dececioná-lo, mas é assim, e é esta a razão por que o budismo moderno não reconhece a tradição budista ancestral que Blavatsky tornou conhecida. Mas há razões por trás, e adianto-lhe algo, existiu uma seita budista hoje extinta, ou assim se acreditava até recentemente, quando de repente estudiosos do Tibete encontraram para sua surpresa quase 40 mosteiros com cerca de 5.000 monges nas regiões tibetanas orientais de Amdo, Qinghai e Sichuan, onde encontraram e puderam traduzir e reeditar as obras completas de uma tradição diferente da atual e que sustentava os conceitos e textos transmitidos pela H.P. Blavatsky no século XIX.
Publicado na revista Seraphis em 28 de Maio de 2020