Basicamente, algum tipo de ser, de existência. Mas logicamente para o nosso propósito vamos apenas levar em conta um ser que possui “consciência” dele, porque um pedregulho atirado e quebrado em pedaços e voltado a colar não creio que possa ser considerado uma reencarnação. Portanto, reduzindo ao básico, o que reencarna é uma “consciência”, ou seja, um núcleo do ser que entra em contato com o plano denso e que começa a exercer a sua função nesse plano: “cum scire” ou seja tomar consciência interagindo com esse plano.
No entanto, a doutrina budista comum insiste que esta consciência não existe por si mesma, mas que é depende da sua interação com outros componentes. A existência de um Eu estável e independente seria algo até a não considerar.
Vamos dar um exemplo, imaginemos um ser humano qualquer, tradicionalmente poderíamos enumerar os seus constituintes como o físico, o corpo e as suas partes, o energético e o funcional, ou seja, todos os sistemas subtis que fornecem e distribuem a energia, a parte emocional, ou seja, todos os movimentos psicológicos relacionados com o afeto positivo ou negativo para algo e finalmente o mental, com todos as suas estruturas e ideias elaboradas.
Imaginemos estas 4 partes constituindo um quadrado que resumiria toda a personalidade humana. O “Eu” pessoal seria o resultado coordenado e simétrico de todos estes componentes. Mas seria um “eu dependente”: imaginemos que esta pessoa sofre um acidente e como resultado o seu corpo físico fica diminuído, fica paralítico ou qualquer outra condição que diminua e limite as suas possibilidades físicas. A nova situação seria a seguinte:
Como podemos ver, o “eu” central e dependente varia a sua posição, o centro deslocou-se para o lado físico, a partir desse momento a psicologia dessa pessoa não é a mesma, ela está cheia de dores e limitações físicas que fazem com que o seu eu gravite até e desde o físico. É outra pessoa. Todos nós conhecemos aquela experiência na própria carne ou em pessoas que conhecemos, a personalidade muda, não é a mesma. Portanto, é um “eu ilusório”, não é real, é dependente.
Podemos imaginar todas as classes de combinações, todos as classes de eventos que podem diminuir um destes lados e deslocar o eu ilusório para um novo centro de gravidade. Podemos até imaginar que o quadrado se quebra definitivamente, geralmente por morte física. Onde está então esse eu? Ele necessariamente desaparece, será outra coisa, mas esse eu dependente já não existe.
A cada passo ao longo da vida, esses 4 componentes variam, crescem, diminuem, envelhecem e distorcem-se, além disso o mundo ao redor também atua e pressiona sobre estes componentes fazendo com que se comprimam e se deformem como um balão de água. Então, se me imagino projetado no futuro, essa projeção é falsa, porque o que vou ou não vou fazer, o que vou sentir ou não, o que vou pensar e até a minha própria maneira de ser e sentir será diferente.
Assim, um homem possuído e curvado quer pela ilusão do Ser quer pelo ceticismo … Não sabendo o que é digno de levar em consideração e o que é indigno de levar em consideração, considera o indigno e o não digno.
E imprudentemente faz as seguintes considerações: “Existi no passado? Ou não existi no passado? O que fui no passado? Como fui no passado? De qual estado para qual estado mudei no passado? Serei no futuro? Não serei no futuro? O que serei no futuro? Como estarei no futuro?”
E o presente também o enche de dúvidas: “Sou? Ou não sou? O que sou? Como sou eu? Este ser, de onde veio? Para onde irá?”
E com tais considerações insensatas, cai num ou noutro dos Seis Pontos de Vista, que então se torna na sua convicção e crença firme: “Eu tenho um ego” ou “Não tenho ego”, ou “Com o ego eu percebo o ego”, ou “Com o que não é ego, percebo o ego”, ou “Com o ego percebo o que não é ego”.
Ou cai num dos seguintes pontos de vista: “Este é o meu ego, que pode pensar e sentir e que, ora aqui, ora ali, experimenta o fruto das boas e das más ações; este meu ego é permanente, estável, eterno, não sujeito a mudanças, e permanecerá eternamente o mesmo.”
Se realmente houvesse ali um ego, também haveria algo que pertenceria ao ego. Mas visto que, no entanto, na verdade e na realidade, nem o ego, nem nada pertencente ao Ego, pode ser encontrado, não será tolo dizer: “Este é o mundo, este sou eu, após a morte, serei permanente, persistente e eterno”?
Estas são apenas opiniões, uma floresta de opiniões, um teatro de fantoches de opiniões, uma agitação de opiniões, um emaranhado de opiniões; e preso nas cadeias de opiniões, o homem ignorante do mundo não estará livre do renascimento, decadência e morte, da aflição, dor, tristeza e desespero, ele não será libertado, quero dizer, do sofrimento.
Palavras do Buda
– Então, de acordo consigo, tanto a afirmação da existência de um eu, quanto a sua não existência, seriam ambas afirmações sem sentido. Porque existe um eu, mas este eu é transitório e temporário e, portanto, é inútil qualquer consideração que possamos fazer sobre ele. Então, como podemos falar de reencarnação e que “alguém” entra na roda dos renascimentos? Amigo, penso que continua dando voltas ao redor do mesmo sem me dar uma resposta definitiva.
-Tens razão em parte, porque quero que consideres tudo isto com ponderação
Publicado na Revista Seraphis de 26 de maio de 2020