Reavivar uma Cultura de Valores Humanos

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Publicado em New Acropolis India em 31 de março de 2021

O Círculo Cultural da Nova Acrópole explora a diversidade de expressões culturais através de uma série de apresentações íntimas e interativas, na tentativa de revitalizar a essência espiritual que forma a base de toda a arte e cultura clássicas. Longe de ser definitivo, este artigo é uma tentativa de partilhar uma síntese da minha aprendizagem de alguns maravilhosos comunicadores que partilharam alguma da sua inspiração e sabedoria connosco nestes últimos anos. Nós estamos-lhes profundamente gratos. Para este artigo, foquei-me essencialmente nas artes clássicas da Índia, para ilustrar o valor da cultura.

A cultura não é só um conjunto de costumes, a particularidade dos trajes ou um estilo de culinária. Estes não são mais que a diversidade de expressão de um sistema de valores. A cultura pode ser vista como um estilo de vida, governada por ideais e valores transcendentais, tais como a busca pela beleza, bondade, sabedoria ou justiça. Podemos talvez dizer que a cultura é a força civilizadora que permite o desenvolvimento do potencial humano, que está impressa na forma como comemos, vestimos e falamos; que norteia as artes e ofícios e que é vislumbrada nas nossas cerimónias.

Esta visão filosófica da cultura pode ser transmitida através do tempo, tanto que cada geração adapta as formas, mas os ideais, o sentido e os princípios mantêm-se inalterados. Assim, a tradição cultural continua vibrante como uma cadeia viva, permitindo-nos receber expressões de sabedoria intemporal e valores dos nossos ancestrais, no contexto dos nossos tempos. É, de certa forma, a procura pelo que significa ser humano. No entanto, quando os valores estão perdidos ou distorcidos, e apenas resta a sua casca exterior, essas mesmas tradições podem cegar-nos em vez de nos despertar.

Propósito Sagrado

Mandakini Trivedi, autor e expoente da forma clássica de dança Mohiniyattam, explica que toda a forma com sentido é, essencialmente, filosófica, porque nos estimula a explorar as perguntas mais comuns da vida: Quem sou? Porque é que estou aqui? Que papel desempenho na minha vida? Não são estas as mesmas questões de identidade, feitas por filósofos de todos os tempos?

Dançarina a realizar uma dança Mohiniyattam. Creative Commons.

Isto foi ecoado pela cantora profissional Dipti Sanzgiri, que também é membro e professora na Nova Acrópole, quando explicou que a palavra svara, que é normalmente expressada como uma nota musical, é composta por duas palavras: sva, que significa o eu, e ra que significa bilhar. Isto significa que tocar uma única nota pode permitir ao eu que brilhe.

Trivedi também explica que a arte clássica é caracterizada, na sua essência, por uma sentida procura pela plenitude e união. Estas são duas formas de arte. A forma empírica, ou Laukika, literalmente “do mundo”, que imita a vida e tenta compreender e expressar o que pode ser visto ou medido. Podemos encontrar exemplos disto em várias formas de música e dança folk. Por outro lado, a arte Alaukika, ou arte transcendental, procura entender e expressar o que não pode ser visto nem medido; procura e dá um vislumbre do que está para além, nos reinos sagrados, onde o objetivo é a unidade, ou o Yoga. Os templos clássicos de dança da Índia são exemplos de arte Alaukika.

O discípulo de Trivedi, Miti Desai, explica que a Vastu Sutra Upanishad expõe o Arupad Rupam Tasya Phalam, ou seja, que “a forma nasce da não forma”. Ela explica que esse é o propósito da forma, que é sempre limitada e passageira, para estimular o retorno à perfeição da não-forma, ou sagrado.  Talvez isto explique porque é que para Chintan Upadyay, uma enorme referência da antiga tradição musical clássica Hindustani do Drupad, cantar é um encontro com o sagrado: “Onde quer que eu cante, é um templo para mim.

Quadro Estrito de Regras

Na música, há apenas sete notas com as quais todos os artistas devem compor. Isto é certo para o ocidente e para a música clássica da Índia. Este quadro dá-nos limites claros, dentro dos quais uma infinita variedade e desenvolvimento são possíveis. Por isso, Chintan observa que nunca dois espetáculos de música clássica serão iguais. É dentro dos limites desse quadro, que os artistas são livres de criar a sua própria arte. Aprendendo a obedecer às regras, o artista pode deixar a sua marca especial, embora permitindo à tradição que evolua, enquanto mantém a sua essência intacta.

Isto é também evidente numa rápida observação da natureza, onde nada é arbitrário ou caótico, todos os componentes obedecem a uma ordem de inteligência subjacente determinada por leis, que resultam em unidade, harmonia e beleza esplendorosa.  A misteriosa sequência de Fibonacci, por exemplo, é expressada numa miríade de aspetos da Natureza; desde o rodopiar das floreiras de girassóis, às ondas do mar, às galáxias em espiral. Além disso, a proporção resultante entre dois números Fibonacci (do 3:5 em diante), chamada de proporção áurea, foi usada por artistas desde tempos idos na sua busca por captar princípios de harmonia e beleza. As proporções arquitetónicas do Pártenon em Atenas, são um exemplo.

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O imenso valor da disciplina

Tara Kini, cantora clássica Hindustani e educadora, explica que quanto mais regras, mais a forma se torna clássica; esse é o quadro de regras que constrói a disciplina da concentração necessária para nos aplicarmos na arte.

Um discípulo caracteriza-se pela sua disciplina. Chinta Upadhyay partilha a experiência da sua prática diária de Svar Sadhana, normalmente por volta das quatro da manhã. Ele explica que o artista pratica uma única nota durante cerca de cinquenta minutos. E que a sessão pode continuar por mais duas horas e meia. Esta prática diária de uma única nota permite ao praticante alcançar um estado de concentração intensa, que ajuda a purificar a mente, torando-a mais calma e clara. Ele descreveu como, através da prática regular, o artista pode alcançar um estado raro em que a nota e o artista se tornam um.

O Guru-Shishya Parampara

A tradição mestre-discípulo é uma tradição honrada desde sempre na Índia, onde o discípulo vive com o mestre e estuda sob a sua direção enquanto ao mesmo tempo cumpre com as tarefas que lhe são pedidas, desde cozinhar a varrer. É claro que além do ensino de uma capacidade, por exemplo cantar, o mestre transmite uma abordagem à vida, uma forma de viver. A esta luz, Chintan disse que até trocar uma lâmpada na casa do guru ganhou um novo significado. Chintan é discípulo do Guru Pandita Uday Bhawalkar, que foi um estudante do lendário Ustad Zia Fariduddin Dagar e de Ustad Zia Mohiuddin Dagar, que veio de 19 gerações de um ininterrupto legado guru-shishya.

Sintonizado com a Natureza

O conceito de raga na música clássica indiana, por exemplo, destila a aspiração de se sintonizar com a ordem natural do mundo circundante, com arranjos musicais que sejam associados a certas alturas do dia, ou a uma certa estação. Mas também encontramos esta busca expressada em várias outras expressões culturais. Estas permitem-nos um trabalho ao ritmo das estações e do momento do dia, com regras de como comer, dormir, colher e celebrar a vida com o rodar das estações. Por exemplo, podemos ver a harmonização tangível com a natureza no trabalho do arquiteto Parul Jhaveri, que explicou que a antiga arquitetura indiana estava cheia de princípios científicos com a intenção de servir tanto a natureza como o homem. Os métodos tradicionais de construção levam em conta dimensões como a conservação de água, arrefecimento natural e disposição de lixo. De modo semelhante, o estudioso de sânscrito Dr. Ushma Williams, explica que o Ayurveda é a ciência e a sabedoria da vida. Ela fala da importância do tempo e do espaço no Ayurveda, por exemplo da importância da comida local e sazonal, colhida no momento certo, na ordem certa.

Cultura como meio de Transformação

Podemos então propor que a arte clássica, bem como os diversos aspetos da cultura, são uma forma de permanente educação e transformação do ser humano, com o propósito de despertar valores humanos. E, portanto, não é surpreendente que a tradução pareça ter tratado a cultura como sagrada. Momentos imersos na arte, e em outras expressões da cultura, podem criar uma breve oportunidade de nos afinar com a Natureza, com a Vida, e de fazer brilhar a melhor versão de nós mesmos; com o que é Belo, Bom e Verdadeiro.

Artigo de Zarina Screwvala

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