Para compreender Gandhi

Como orientador de um movimento anti-violência civil que lutou pela independência de uma nação, Mohandas Karamchand Gandhi foi cognominado de “activista espiritual”, um corajoso lutador pela liberdade, ou um político hábil.
Interview with Dr. Tridip Suhrud By Harianto H Mehta and Manjula Nanavati, The Acropolitan Magazine

Num estilo de vida profundamente ascético, sem comprometer o código de ética, bem como com profunda conexão e profundo respeito pelos direitos humanos, foi seguido por multidões, foi aclamado como se fosse um Santo, sendo-lhe atribuído o título de honra “Mahatma”. Pode dizer-se que com a sua profunda influência em grandes líderes mundiais, como Nelson Mandela ou Marthin Luther King, terá contribuído para o curso da História.

Para compreendermos a verdadeira dimensão da obra deste homem, é necessário apelar à reflexão. Se captarmos o espírito dos seus ideais elevados, poderemos alcançar uma ferramenta prática e efectiva para a transformação e equilíbrio da sociedade dos dias actuais.

Para prestar uma homenagem à sua implacável busca pela Verdade, na altura do 150º aniversário do nascimento de Gandhi, a revista “The Acropolitan Magazine” encontrou-se com o estudioso “Gandhiano” e historiador cultural, o Dr. Tripid Shurud. Na qualidade de director do “Sabarmati Ashram Preservation and Memorial Trust”, foi o fundador do Portal do Legado de Gandhi. O Dr. Shurud é fluente nas três línguas com que Gandhi escreveu, é autor de inúmeras obras literárias, incluindo “Beloved Bapu: The Mirabehn-Gandhi Correspondence”, bem como uma edição bilingue “Hind Swaraj” de Gandhi. Actualmente está a trabalhar na tradução dos diários do “Manu” Gandhi, e também num projecto de vinte volumes intitulado “Cartas a Gandhi”. O Dr. Shurud é considerado um especialista na vida, nos livros e na tradição intelectual de Gandhi. Seguem-se os excertos da conversa.

REVISTA ACROPOLITAN (RA): O estilo de vida profundamente ascético de Gandhi é lendário. Ele valorizou muito a necessidade de desenvolver um auto-controlo muito rigoroso na sua dieta, na indumentária, na castidade, nos medicamentos, quase a ponto da obsessão. No seu ponto de vista, o que poderá ter despoletado este nível tão elevado de auto-domínio?

DR. TRIPID SHURUD (SHURUD): Simplesmente, isso veio da necessidade que Gandhi teve de “ver” Deus “frente-a-frente”. A questão que se põe é se alguém conseguirá ver Deus “frente-a-frente” quando vive num corpo físico? Ao que Gandhi responde que isso é uma ilusão, nenhum ser humano pode ver ou estar com Deus “frente-a-frente”. Ou seja, estando num corpo, vivendo num corpo físico, não se pode almejar ver Deus. Isto é uma questão filosófica de longa data no entendimento da relação entre a mente e a matéria. E Gandhi sabia-o, estava consciente disso. Disse que temos a aptidão para ouvir a “voz de Deus”, a “voz da Verdade”. Para Gandhi, há dois requisitos que o tornam possível: o primeiro é o despertar a nossa capacidade intrínseca de ouvir a voz interior, e o segundo é a capacidade de nos conectarmos com o mundo ao comando dessa voz.

Mohandas Karamchand Gandhi

Gandhi fala-nos da voz de Ravana, a não-verdadeira – o ego -, e na voz de Rama, a verdadeira. De forma a desenvolvermos a capacidade de distinguir estas duas vozes, para que saibamos estar a ouvir a “voz da verdade”, é necessário dominar os sentidos, a mente (do ego) e os desejos.

A menos que os sentidos se encontrem em harmonia, não se pode alcançar o que se chama de uma profunda consciência. E para Gandhi, todos os desejos/tentações, quer surjam da mente ou do corpo, vão ser satisfeitos através das vivências do corpo físico. É efectivamente o corpo que sente o desejo, é através dele que revelamos a insatisfação ou acusamos a saciedade, é onde residem a dor e o prazer. E sabendo que o corpo é um impedimento, a forma de lidar com isso é subjugar o corpo a uma vontade superior da mente pura, guiada pela consciência. Pois se o corpo toma um caminho diferente do da vontade superior da mente pura, então teremos um problema.

RA: Satyagraha pode ser traduzido como a “Força da Verdade”, mas também nos remete para episódios de desobediência cívica, falta de cooperação ou resistência passiva. O conceito teve um impacto além do contexto político. Qual foi o princípio subjacente que orientou o Satyagraha?

SHURUD: O que é afinal um acto de Satyagraha? Quando devemos ou podemos desobedecer? Gandhi disse que se desobedece quando algo é tão repugnante para a consciência que se escolhe obedecer a uma Lei superior.

RA: Mas este tema não se mostra demasiado subjectivo?

SHURUD: Sim, claro. Gandhi defende que o nosso sentido de verdade deve sempre ter em conta a possibilidade de poder estar errado. Por isso, o Satyagraha é um processo que prevê o diálogo.

Em qualquer percurso de busca da verdade deve ser considerada a hipótese de se estar errado. E neste alinhamento vem outra questão, é possível ter-se uma noção de verdade relativa que seja capaz de nos levar no caminho da verdade absoluta? O que nos transporta para uma outra questão filosófica antiga: a verdade é absoluta, ou é relativa?

A resposta de Gandhi a esta questão profunda é muito simples. Não se pode entender a verdade em toda a sua plenitude. Defendeu a noção de verdade “Budista” ou “Jainista”, que diz que a verdade revela múltiplas “facetas”… anekantavada, ou “anek anta”, ou seja, imensos desfechos possíveis para o caminho da busca da verdade. A verdade sempre terá múltiplas interpretações, e cada um poderá vislumbrar uma parte da verdade.

Deste modo, na aplicação prática do Satyagraha, não há questões não-negociáveis. Um Satyagrahi sempre está aberto à negociação. Não é de todo uma estratégia de actuação. É um princípio filosófico que sempre considera que pode haver verdade na palavra do outro. Até um acto de grande injustiça pode revelar algo de verdadeiro.

RA: Gandhiji disse: “A experiência mostrou-me que o civismo é o maior desafio do Satyagraha”. O que significa concretamente “civismo” no contexto do Satyagraha?

“Só é possível ser-se líder depois de nos tornarmos líderes de nós próprios, e de diminuirmos continuadamente a distância que separa as palavras das acções.”

SHURUD: Civismo em duas vertentes. Primeiramente reconhecer que aquilo que é verdadeiro para nós pode não ser para o outro. Considerar sempre que o nosso semelhante é tão capaz de alcançar a verdade quanto nós próprios. Pois se um homem duvida da capacidade do outro de agir sob a verdade ou tão-pouco reconhecer a verdade, sabes o que o Satyagraha vai dizer? Que o cego é ele que se julga superior, pois se não vê além da “sua verdade”, não conseguirá ver a verdade onde quer que esta se lhe apresente.

Assim sendo, podemos dizer que civismo é quando eu respeito a tua verdade. O Satyagraha é a única forma de protesto que admite a existência de verdade no outro. E é por isto que Gandhi não viu ninguém como inteiramente “mau”. O que Gandhi transmitiu aos Britânicos, a quem reivindicava a liberdade dos indianos, foi que também eles, seus rivais, podiam alcançar a verdade. E tudo o que está no escuro pode brilhar com alguma luz.

RA: Como se pode nutrir este civismo, ou reacender a luz, essa vontade de despertar para a verdade?

SHURUD: Pela conduta. Pelo exemplo justo.

RA: Gandhi considerava o exemplo importante quando temos uma posição de liderança?

SHURUD: Sempre. E não apenas para Gandhi, mas para qualquer pessoa que procure melhorar, que deseje qualquer tipo de transformação, deve começar por si própria. Isto é, se eu te peço para melhorares os teus hábitos de consumo, devo começar por melhorar os meus. Do mesmo modo que se peço a alguém que melhore o seu temperamento explosivo nas relações, devo primeiro colocar a minha consciência na forma como me relaciono com os outros. Se te peço para te sujeitares à prisão em prol da luta pela liberdade, eu sujeito-me a ir para a prisão lutar ao teu lado?

Gandhi diz que só é possível ser-se líder depois de nos tornarmos líderes de nós próprios, e de diminuirmos continuadamente a distância que separa as palavras das acções.

Gandhi em Lancashire, 1 de Janeiro de 1931: o líder indiano Mahatma Gandhi (Mohandas Karamchand Gandhi, 1869 – 1948) é recebido por uma multidão de mulheres trabalhadoras têxteis, durante a sua visita a Darwen. (Fotografia de Keystone/Getty Images)

RA: A liderança pode revelar-se uma questão extremamente complexa. A vida não é “preto no branco”, precisa enfrentar os dilemas espirituais e éticos. Quais foram afinal estes dilemas morais, e como é que Gandhi os ultrapassou?

SHURUD: O conceito da não-violência é muito controverso. O que é suposto fazermos se a polícia vem contra nós? Embora a lei preveja a auto-defesa, a pergunta é: o Satyagrahi pode atacar aquele que o agride? A resposta de Gandhi é: Não. Um verdadeiro Satyagrahi não ataca para se defender.

RA: Então o que deve fazer numa situação dessas?

“Há uma relação inviolável entre os meios e os fins – os meios são como sementes que nos dizem os frutos que vamos colher.”

SHURUD: Nada. Não reagir, deixar-se bater, até ao ponto de que o agressor se aperceba o como é vão o seu acto de violência.

RA: Mas não é digna a luta pela justiça? Não haverá conivência com a injustiça se optar pela não-acção?

SHURUD: Gandhi adopta um ponto de vista divergente. O papel do Satyagrahi é dizer ao agressor: “Pratica o mal. Se tirares a minha vida vais satisfazer a tua sede de violência, então continua… fá-lo.” É uma atitude extrema, e não é que ele não o tenha feito.

Um dos seus grandes desafios foi o piquete que ocorreu em 1930 nas Minas de Sal do Dharasana. Os Satyagrahis transpuseram a cerca de arame farpado que protegia as salinas, e foram atacados, dia após dia, semanas a fio. Os registos médicos mostram que daqueles que sofreram ferimentos, nenhum apresentou lesões nas mãos ou nos braços. As lesões ocorreram nos ombros e cabeça. Gandhi pediu a estes trabalhadores para não levantarem sequer uma mão, nem mesmo para proteger a cabeça. Ele acreditava que a única resposta possível para aquele tipo de violência era a completa ausência de violência.

Este episódio captou a atenção da opinião pública mundial, e colocou em causa a legitimidade da actuação das colónias britânicas. O mundo viu o acto de total não-violência como uma prova na futilidade do uso da violência como meio legítimo de subjugar as pessoas.

RA: Por outras palavras, um mundo civilizado não pode justificar o uso de meios não civilizados?

SHURUD: É isso. A questão fundamental é: qual é a relação entre os meios e os fins? Ao acreditar que o fim é bom, não importam os meios que usamos para o atingir? Nós queremos liberdade, e devemos pagar qualquer preço? Gandhi diz que não. Há uma relação inviolável entre os meios e os fins – os meios são como sementes que nos dizem os frutos que vamos colher. Então, se tu alcanças a liberdade através de um acto de violência, a violência passará a ser um meio legítimo para essa sociedade, que não poderá assim aspirar tornar-se uma sociedade livre de violência, livre de exploração e justa. Quando na origem há a crença de que qualquer meio é aceite, como vamos evitar que futuramente não surjam actos violentos entre os homens dessa sociedade?

Gandhi em Calcutá, 16 de Abril de 1938: Gandhi sai da prisão presidencial em Calcutá depois de entrevistar prisioneiros políticos (fotografia Keystone/Getty Images)

O colectivo passa a crer que os seus motivos são nobres. Os que atacam para defender as sagradas vacas, usarão da violência, alegando a sua legitimidade. É este o caminho? Gandhi diz que é o que vai acontecer se a violência e a exploração forem aceites como meios justos para atingir os fins.

RA: Gandhiji referiu a “verdadeira civilização como aquele modo de conduta que aponta ao homem o caminho do dever”. Ele não faz referência a direitos inalienáveis, mas sim a deveres. A que tipo de deveres se referia Gandhi concretamente?

SHURUD: Gandhi diria não à violência. Não à exploração. Devem ser criadas as condições para que cada ser humano possa explorar o seu potencial. Se mais ninguém se preocupa, é nosso dever criar as condições facilitadoras, o que chama de “tutela”; não por compulsão, mas pela obrigação moral do dever, que é a base de qualquer trabalho filantrópico. Não se pode alcançar a filantropia ou a tutela, sem um sentido de dever para com a sociedade.

O facto de haver actualmente uma lei que regula a Responsabilidade Social Corporativa (RSC) é um sinal de que o “rico” perdeu a sua noção do dever. Se cada um cumprisse com o seu dever social e humanitário de forma voluntária, não teria havido a necessidade de criar uma lei que obrigasse à responsabilidade social. Por isso não vejo que isto seja um bom indicador, pelo contrário, mostra falta de mérito.

Este sentido do dever é fundamental para qualquer sociedade. Não creio ser possível ter uma sociedade harmónica, sem que cada uma das partes reconheça as suas obrigações para com o colectivo. A justiça define os teus direitos, mas não os teus deveres, e esta distinção é de extrema importância.

RA: Não terá sido Gandhi um pouco “ingénuo”? Já que os deveres são de carácter bastante pessoal.

SHURUD: Não, não está. O que significa pessoal? A ideia da individualidade atinge-nos a todos nós, certo? Por exemplo, todos dizemos “Esta é a minha cidade”. O facto de sentirmos preocupação com as alterações climáticas – é pessoal? Claro que é. Iriamos dizer que a preocupação é nossa, que nos pertence, mas também é dos que nos sucederão. Ou seja, o que temos como nosso, na verdade, abrange as gerações vindouras.

RA: Gandhi pensava ser uma obrigação a tarefa de ampliarmos gradualmente o que se pode chamar de âmbito de dever pessoal.

SHURUD: Sim. Por exemplo, o que significará a individualidade para um líder?

RA: Os seus seguidores são parte integrante da sua individualidade.

SHURUD: Precisamente. O líder reconhece isso. E líderes como Gandhi que, paulatinamente, ampliam o sentido de dever pessoal, até alcançarem também os que lhes são alheios.

RA: Gandhiji nunca escondeu o quanto a civilização moderna o angustiava. Defendeu a sua forma de vida muito própria, e levantou várias questões controversas em Hind Swaraj; onde expressa o seu desagrado face a advogados, médicos, hospitais, ferrovias… No seu grito de guerra em que apela ao regresso à origem, o que pretendeu Gandhi transmitir e iluminar?

SHURUD: Não penso que devamos interpretar o Hind Swaraj à letra. Não esqueçamos que se trata de uma obra filosófica. Não é um texto pragmático.

Temos que ter em conta que esta obra foi escrita numa época em que o que hoje chamamos de modernidade não existia. Quando Gandhi a escrevia, em 1908, a inovação tecnológica era apenas uma possibilidade. Havia, inclusive, muito mais vida além da modernidade, e o que hoje consideramos obsoleto, já foi actual.

Gandhi via a evolução com uma forma de alterar o foco do valor humano, para o exterior, para os objectos. Filosoficamente pode dizer-se que transfere o sentido de bondade humana ou virtude para um objecto, que é o que hoje denominamos de consumismo. Eis a questão. Essa é a primeira.

Segunda: temos que admitir que a colonização estava directamente ligada à inovação. A industrialização não teria sido possível sem o suporte da estrutura colonial. Quais foram as duas formas de conhecimento que vieram para a Índia com o conhecimento ocidental moderno? Direito e Medicina. Ser governados por leis que não são as nossas, aconteceu devido ao enquadramento jurídico.

RA: Está a dizer que quando Gandhi critica os hospitais e as linhas ferroviárias, o faz num contexto simbólico?

SHURUD: São metáforas. A linha de comboio foi considerada durante muitos anos como o primeiro engenho de produção industrial. Ainda hoje vemos as linhas férreas como um exemplo de inovação, certo? Se na nossa localidade instalarem uma rede de metro eficaz, a tendência será que voltemos a eleger o governo que tomou a medida, pois passa a ideia de que houve inovação e progresso.

RA: Mas isso é progresso, certo?

SHURUD: Mas será a única forma de progresso? Quero dizer, embora seja uma inovação desejada, esta não reflete verdadeira evolução da sociedade. Até pode ser vista como regressão, tendo em conta que levou ao crescimento descomedido e às cidades incontroláveis. Se tivesse havido um crescimento mais sustentado e equilibrado, Bombaím seria actualmente mais habitável, e Delhi mais respirável.

RA: Como se relacionaria Gandhi com a juventude da Índia moderna?

SHURUD: Não seria fácil. Ele não era de trato fácil. Eu vejo de forma muito clara. Se nos sentimos infelizes no mundo em que vivemos, se vemos injustiça, pobreza, miséria, que não consigamos aceitar e compreender, então devemos envolver-nos com a Índia. E uma das figuras que nos permite conectar profundamente com a Índia é Gandhi.

Ninguém aprecia ter por perto alguém que coloca questões morais pertinentes e desconfortáveis, e era precisamente o que Gandhi fazia na sua relação com a Índia. É nos tempos de crise que nos “voltamos” para Gandhi. E nesses momentos ele pode efectivamente ser um grande aliado no sentido que possibilitará a melhoria das nossas vidas e por conseguinte do colectivo.

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