Desde que nascemos, começamos um percurso existencial durante o qual nos ensinam tudo aquilo que sabemos. Alguém nos ensinou quais alimentos nos fazem bem e quais os que nos fazem mal; alguém nos ensinou a andar e nos levantou quando caímos; alguém nos ensinou a falar e nos corrigiu quando erramos; alguém nos ensinou a ler e a utilizar ferramentas, a pedir por favor e a pedir desculpa, a nadar e a andar de bicicleta, a acender um fogo e a ligar o fogão; alguém nos ensinou que o fogo cozinha os alimentos e que o frigorífico os conserva; ensinaram-nos a evitar o que nos pode ferir ou adoecer, e como curar quando nos ferimos ou adoecemos.
Tomando consciência do quanto devemos aos outros, àqueles que sabiam e nos ensinaram quando nós não sabíamos, àqueles que nos transmitiram o que hoje sabemos, despertamos naturalmente uma infinita gratidão por termos nascido no seio de uma família humana, ainda que pouco a reconheçamos.
Para todas aquelas coisas existe quem as sabe e quem as aprende. É a realidade mais natural da existência. No entanto, nem sempre o vemos assim. Por vezes, há resistência em admitir que talvez haja quem saiba mais e, portanto, nos possa ensinar acerca da compreensão dos fenómenos da natureza, das normas da cortesia, dos valores da ética, do sentido da vida, das realidades misteriosas do universo e do ser humano. Em muitas destas questões todos somos, ainda, como crianças que ignoram aquilo que os sábios – os adultos – já aprenderam.
É inevitável – a não ser que nos isolemos do mundo numa improfícua solidão – estarmos na companhia de outros seres humanos. Esta companhia cria vínculos, relações, alianças, partilha, influência e aprendizagem recíprocas. De acordo com a qualidade e sabedoria das nossas companhias, serão melhores ou piores os vínculos, influências e aprendizagens resultantes.
A companhia de pessoas sensatas, íntegras, boas, generosas, cultas, inspirar-nos-ão a ser também sensatos, íntegros, bons, generosos e cultos.
Quando encontramos um sábio, ou reconhecemos um mestre, são uma bênção todas as palavras deles que nos ajudem a corrigir-nos, a melhorarmos, a aprendermos, a avançarmos no caminho do aperfeiçoamento.
Por outro lado, isso não significa que todas as pessoas que nos repreendam sejam sábias. Existe no mundo demasiada incompreensão, intolerância, vaidade e arrogância para que consideremos como válida toda e qualquer observação que possam fazer a nosso respeito. A proximidade de pessoas que nos tentam corrigir para que, desse modo, possam sentir-se superiores, ou para rebaixar-nos, com um sentido corrosivo da crítica, essa proximidade é pouco saudável ao nosso desenvolvimento. No entanto, quando nos alertam, nos corrigem e nos aconselham por amor, para nos elevar, com um sentido cortês de incentivo à aprendizagem – o qual é o papel natural dos sábios e dos mestres – nesse caso devemos agradecer todos esses tesouros, pois é aí que está a nossa possibilidade de progresso.
Podemos perguntar-nos, então, como reconhecer um sábio?
“Os construtores de canais regulam os rios; os arqueiros endireitam o eixo das flechas; os carpinteiros dão forma à madeira; os sábios controlam-se a si próprios.” (verso 80)
A vida de um sábio desenvolve-se como uma arte, com a excelência própria de um grande artista. Cada palavra, cada gesto, cada decisão, são acompanhados de um preciso controlo, semelhante, no pintor, ao delicado movimento do pincel, ou da exata cinzelada do escultor. Um enorme sentido de presença, uma plena atenção a cada movimento do seu ser, um profundo sentimento de bondade, uma justeza imponderável de intenções, são os valores intrínsecos à vida do sábio.
Em muitas artes se pode adquirir semelhante mestria. Os rios, regulados pelos construtores de canais, simbolizam as vias de ação do sábio, que utiliza a sua energia para fazer com que a corrente da vida fertilize os campos de todas as consciências e se dirija no seu correto sentido, para a foz que desagua no oceano da sabedoria. As flechas, endireitadas pelos arqueiros, simbolizam cada um dos seus pensamentos, numa mente treinada em acuidade, percepção, foco e sensibilidade, de modo a manter-se seguro nas suas intenções, certeiro nas suas decisões, e penetrante na sua compreensão. Fazendo retroceder a corda do arco da sua introspeção, apontando ao alvo transcendente das suas metas, o sábio atinge o próprio centro da vida e do universo com cada pensamento e ação. A madeira, talhada pelos carpinteiros, simboliza a personalidade do sábio, que constantemente se trabalha a si próprio fazendo sobressair o polimento da sua conduta e o brilho das suas virtudes.
“Assim como uma rocha sólida não é abalada pela tempestade, da mesma forma o sábio não se deixa afectar por louvor ou culpa. Aquele que é bom renuncia a tudo. O virtuoso não faz conversa vã sobre desejos de prazeres. Os sábios não mostram euforia ou depressão quando tocados pela felicidade ou tristeza.” (versos 81 e 83)
O caminho da sabedoria deverá ser aquele que nos torna melhores, é certo, mas também aquele que nos torna mais fortes. Não há bondade que resista, sem fortaleza interior, às forças adversas à nobreza de espírito que imperam no nosso mundo. Muitos são os que se consideram virtuosos e respeitáveis – como afirmou H.P. Blavatsky – apenas porque não foram submetidos à prova. É fácil julgar os políticos e a sua corrupção, quando ainda não se experimentou o poder. É fácil imaginar o bem que faríamos aos outros se tivéssemos muito dinheiro, apenas porque talvez nunca o teremos. Não é difícil imaginar que suportaríamos a tentação do poder, do dinheiro ou do estatuto, que manteríamos a integridade em qualquer circunstância, apenas porque não estivemos expostos a elas. E também é fácil, por uma ligeira tristeza, por uma pequena derrota, por uma sombra passageira, por um simples desaire, deixarmo-nos cair em desânimo, desfazer a confiança em si mesmo, perder o entusiasmo de progresso, desistir de um caminho espiritual. É difícil e exige um esforço constante para manter o ritmo dos nossos passos, uma vigilância permanente às nossas intenções e desejos, um renovado impulso interior para o triunfo sobre nós mesmos, uma elevação ininterrupta da consciência para vislumbrar o caminho correto.
O sábio é aquele que conquistou o seu centro, o seu ponto de apoio fixo e inamovível perante qualquer circunstância. Assim será reconhecido por quem o procurar. Na adversidade, é aquele que mantém o discernimento do recto pensamento e a coragem da recta ação. Perante o triunfo é aquele que mantém a humildade. É aquele que fica impassível perante o elogio. Nem o prazer nem a dor o perturbam ou desviam de cumprir o que considera ser o seu dever. Recebe as alegrias da vida sem se deixar cair em excessos, acolhe as tristezas sem ceder ao chamamento do abismo.
“Ao abandonar o caminho escuro, que o homem sábio cultive o caminho brilhante. Tendo saído de casa para a mendicidade, possa ansiar pelo deleite no desapego, tão difícil de apreciar. Deixando os prazeres sensuais, sem apego, que o homem sábio se limpe das impurezas da mente.” (versos 87 e 88)
Existem dois mundos claramente distintos, cuja mistura é desfavorável à completa vivência da vida espiritual própria do sábio. O mundo escuro é o mundo que tem os seus princípios e a sua finalidade na matéria, caverna de sombras enganosas onde os desejos são reis, onde não tem fim a ambição de obter, de ter mais, de enriquecer, de acumular, tornando cada vez mais espessos os véus que recobrem a dimensão luminosa da existência. O mundo da luz, aquele onde o sábio estabelece o seu “caminho brilhante”, é o reino do dar, da generosidade, da abnegação, do serviço. É o mundo onde o continuado desprendimento vai fazendo cair as camadas que impedem a saída da luz, gerando uma nova dimensão do prazer, um novo tipo de posses, o encontro com a verdadeira riqueza: os tesouros espirituais da virtude.
Daí que o Buda tenha deixado o seu palácio, abdicado do seu trono, abandonado (em perfeita segurança) a sua belíssima esposa e o seu amado filho, para se dedicar a um caminho de luz que irrompeu o céu do espírito humano e beneficiou todos os seres ao longo dos séculos. Foi necessário deixar para trás aquilo que faria Siddhartha ser reconhecido como grande à luz dos valores da sua época, como bom rei, como bom marido e bom pai, para se tornar o Buda, o excelso guia das consciências em todas as épocas, o esplendoroso mestre da humanidade. Foi preciso tornar-se mendigo no mundo material, queimando a sua personalidade no fogo da disciplina e do autodomínio, para obter a plenitude das riquezas interiores que formaram o seu glorioso corpo espiritual e eterno.
“Aquele que segue profundamente o Dhamma vive feliz com uma mente tranquila. O homem sábio sempre se deleita no Dhamma dado a conhecer pelo Nobre Senhor (o Buddha). Ao ouvir o Ensinamento, os sábios tornam-se naturalmente purificados, tal como um lago profundo, claro e sereno.” (verso 79 e 82)
A palavra “feliz” tem, na sua raiz latina, felix, felīcis, associado o conceito de fértil e fertilidade. Há felicidade quando os campos estão férteis, quando as árvores dão frutos, quando nasce um filho, quando a vida avança e se desenvolve. A vida do sábio já não tem o seu centro no crescimento das sensações corporais, nem na geração de voláteis emoções, nem no alimento de vãos pensamentos. A sua felicidade não está no mundo nem em nada que dele advenha. O sábio obtém a sua felicidade no contacto com a Sabedoria, com a Lei (Dhamma), e na vida que advém desse mundo Ideal e Divino, que é a sua própria Alma desperta.
Nessa união com o Dhamma, a alma do Sábio frutifica em virtudes, em discernimento, clareza de visão, bondade, beleza interior, sentido de justiça. Quanta felicidade deve sentir uma alma assim!
“Poucos entre os homens são aqueles que atravessam para a outra margem. O resto, a maior parte, apenas corre para cima e para baixo na margem de cá. Mas aqueles que agem de acordo com o Dhamma perfeitamente instruídos, atravessarão o reino da morte, tão difícil de atravessar.” (versos 85 e 86)
Tal como é afirmado no livro A Voz do Silêncio, de H.P. Blavatsky,
“Ai de nós, ai de nós, que todos os homens possuam Alaya, sejam unos com a grande Alma, e que, possuindo-a, Alaya de tão pouco lhes sirva! Repara como, qual a lua se reflete nas ondas tranquilas, Alaya é refletida pelos pequenos e pelos grandes, espelhado nos átomos ínfimos, e contudo não consegue chegar ao coração de todos. Ai de nós, que tão poucos sejam os homens que se aproveitem do dom, do dom sem preço, de aprender a verdade, a verdadeira percepção das coisas existentes, o conhecimento do não-existente!”
A outra margem está ao nosso alcance, brilha por detrás dos nossos mais elevados pensamentos, irradia constantemente a partir do centro do nosso coração. Esta é a grande esperança, esta é a magnífica possibilidade, a maravilhosa promessa da via da Sabedoria, que palpita na vida do Sábio. O Dhamma é o caminho, é a luz que o mostra, é a Compreensão em si mesma, é o conhecimento do coração, é a escada de ouro, é o elixir da vida eterna. Sem o Dhamma, afastados dele, deambulamos pelo “reino da morte”, ou seja, pelo que nasce e morre, pelo que é mastigado sem cessar pelas mandíbulas do tempo, pelo que cai constantemente no abismo do esquecimento, marionetas do Karma, dos caprichos do Destino, avançando sem luz pelas cavernas da ignorância e do sofrimento sem sentido.
A barca para a travessia devemos construí-la com as nossas ações caridosas, com a pureza do coração, com a rejeição do que é falso e a aceitação do que é verdadeiro, com a prelação sobre o que é eterno e abdicação do que é transitório, com a reflexão profunda da luz da alma no oceano sagrado da sabedoria.
Ainda assim, com tão grande e necessário esforço, com tamanha dificuldade, com tão enorme trabalho que durará eras em concluir, ainda assim, não há outro caminho, não outra saída deste mundo de injustiça e escuridão, não outro porto onde atracar na outra margem. Daí que, por pequenos que sejam os nossos esforços, por simples que sejam os nossos gestos de bondade, por mais distantes da verdade pura que estejam as nossas reflexões, ainda assim, todos valem a pena, pois não é um ser humano aquele que progride, mas sim a humanidade inteira com cada passo que individualmente damos no caminho do Dhamma.
“Aqueles cujas mentes atingiram a excelência total nos Sete Factores de Iluminação, que, tendo renunciado à ganância se alegram no desapego – livres de obstáculos, brilhando com sabedoria, alcançam o Nibbāna nesta mesma vida.” (verso 89)
Nota: A edição do Dhammapada utilizada para este Comentário é a das Publicações Mosteiro Budista Theravada, na tradução portuguesa de Bhikkhu Dhammiko. 2013
1 – Alaya, a Alma Universal ou Atman de que cada homem tem um raio em si, e com que se supõe que é capaz de se identificar e se fundir.
2 – Da tradução de Fernando Pessoa, 1916.
3 – Os Sete Fatores da Iluminação são os seguintes: (1) Atenção, cuidado ou autocontrole; (2) Sabedoria ou investigação da Doutrina (Dhamma); (3) Energia; (4) Contentamento ou êxtase; (5) Serenidade; (6) Concentração, isto é, uma consciência firmemente estável (Samadhi); e (7) Equanimidade.