A seguinte carta foi escrita recentemente pelo Sr. Jinarajadasa ao Sr. Lawrence Gilman, autor das Óperas de Wagner. Embora seja uma carta pessoal, reproduz-se aqui que outros amantes de Wagner podem compartilhar a bela compreensão do Sr. Jinarajadasa dos valores mais subtis da música de Wagner. Ed.
Caro Senhor: Passei duas noites lendo com profundo deleite o seu livro, Óperas de Wagner. Como gostaria de ter ao meu lado os meus libretos do Anel e do Parsifal onde marquei a lápis ao lado os grandes momentos em que os ouvi. Ouvi o ciclo do Anel pela primeira vez há trinta e seis anos em Munique, no Teatro Prinz Regenten. Richter era um dos maestros, e os artistas tinham vindo para Munique depois de Beyreuth. Quatro anos depois, ouvi o Anel em Dresden, e acho que Weingartner era o maestro. (No mês passado, ele conduziu aqui no Queen’s Hall um concerto da Sociedade Filarmônica, e a velhice não diminuiu seu poder ou penetração como intérprete.) Em outras duas ocasiões ouvi o ciclo do Anel. Nos EUA ouvi Parsifal duas vezes, uma delas no Metropolitan de Nova York. Na primavera passada, Parsifal foi dado aqui no Covent Garden, com cenários fantásticos na cena da Donzela das Flores, com donzelas que estavam quase na casa dos trinta e cinco anos, eu acho, e desajeitadas em suas danças. Antes de ir a Munique para o Anel, um amigo, um wagneriano entusiasta, tocou para mim repetidamente os principais motivos. Quando cheguei a Munique, fiz exatamente o que recomendou no final do seu livro. Eu repassava o livreto todas as manhãs com a ajuda de um dicionário alemão.
Assim, quando todas as tardes e noites ouvia o Anel (naquele teatro construído segundo o plano de Beyreuth, onde de cada assento há uma visão desobstruída do palco, onde a orquestra está escondida, e os ruidosos instrumentos de percussão, trombones, trompetes e tambores estão no fundo da orquestra – bem, e a música parece brotar no ar do meio do auditório), tive um deleite como nunca imaginei que a ópera pudesse dar. E que alívio e que renovação estética foi depois de três anos de ópera italiana – na altura eu estava a morar em Itália. E que delícia Wagner deu, algo não só para os ouvidos, mas para a mente também. Então veja porque aprecio o seu livro e leio-o com tanto entusiasmo. Mas escrevo-vos não só para vos manifestar o meu apreço, mas também para dizer que sempre me pareceu que se podia descrever a singularidade das óperas de Wagner dizendo que elas não se realizam num único palco, mas em três palcos simultaneamente. Há, primeiro, o palco do teatro, o palco visível onde os atores se movem e cantam.
É o palco que o frequentador comum de ópera vê. Mas há uma segunda fase, em que também os acontecimentos acontecem ao mesmo tempo que os acontecimentos visíveis na primeira fase. Esta segunda fase é criada pelos leitmotivs que a orquestra toca. No primeiro palco, os atores estão a mover-se e a cantar, ou podem estar parados e a ouvir. Mas, obviamente, eles devem estar a pensar e a sentir todo o tempo durante a ação, mesmo que não estejam a dizer nada. O que pensam e sentem não é revelado na primeira fase. Mas revela-se no segundo palco, e invisível, através do leitmotivs. A história estende-se assim para uma nova dimensão, por assim dizer, ganhando assim uma intensidade e profundidade vistas e sentidas apenas por quem segue os leitmotiv, dos quais por vezes apenas um ou dois compassos são dados pelo acompanhamento orquestral.
É como nas tragédias gregas, onde a história era familiar ao público, que sabia como devia desenvolver-se. Quando, portanto, o coro diz algo, em “ironia”, como é a palavra grega, o público compreende, embora o ator não o faça, mas há uma terceira fase ainda, onde, também, os acontecimentos estão a acontecer, num mundo invisível, invisível para o público e, claro, impercetível pelas pessoas envolvidas no drama. Imaginemos este terceiro estágio como, no espaço, acima do segundo, como o segundo está acima do primeiro, mas todos os três abertos ao observador se ele tiver “olhos para ver”. Este terceiro estágio é onde as forças do destino são reveladas em ação – a colheita do Karma, como dizemos na Índia.
À medida que os personagens desenvolvem as suas linhas de ação separadas, de repente é-nos dada uma ideia da questão de todos eles, da qual eles não têm perceção possível. Pois os leitmotivs falam-nos do funcionamento do destino. Assim, os motivos do “anel” e da “maldição no anel”, e outros são dados pela orquestra em certos momentos do Rheingold; Wotan continua os seus esquemas benéficos para dominar o mundo, mas o leitmotiv da maldição nos diz como aquela “roda rolante” do Karma que ele iniciou continuará rolando até o fim inevitável. Assim, repetidas vezes, ao longo dos quatro dramas do Anel e de Parsifal.
Para o público em geral, a Marcha dos Mortos em Siegfried é apenas uma solene marcha fúnebre; mas para aqueles que conhecem o leitmotivs, a marcha é a história de vida não apenas de Siegfried, mas também de qualquer grande herói, com toda a sua grandeza de esperança e tragédia, com uma pungente dor indescritível. Para sentir a intensa alegria estética e sua felicidade que estão nos dramas, é preciso conhecer o leitmotivs. Pois então, ao ouvi-los, não apenas a nossa imaginação, que vê o segundo estágio, mas também a nossa intuição, que vê o terceiro estágio, entra em ação. O drama torna-se então “vivo” para nós de uma forma que nenhum compositor antes de Wagner sonhou ser possível, e nenhum depois dele conseguiu.
De facto, Wagner é tão colossal como dramaturgo, além de sua natureza gigantesca como músico criativo, que se pode muito bem dizer que há apenas uma personagem que Wagner poderia ter sido na sua vida passada – Ésquilo. Hans von Bulow disse tudo nas palavras que cita sobre o Anel: “Não posso falar-vos do Niebelungen — diante desta obra, todos os recursos de expressão falham. Limitar-me-ei a dizer isto. . . Nada parecido, nada que se aproxime dele, jamais foi produzido em qualquer língua, em qualquer lugar e em qualquer momento. A partir dele, olha-se para baixo, para cima, tudo o mais.” Pode interessar-lhe saber que o primeiro propagandista de Wagner em Inglaterra, W. Ashton Ellis, a quem se refere como biógrafo inglês de Wagner, foi um teosofista. Ele era membro da minha própria Loja, a Loja de Londres. Em 1886 ele fez um discurso aos membros sobre Wagner, e foi publicado como Transação nº II da Loja com o título: “Teosofia nas Obras de Richard Wagner”. Estou informando meus amigos em muitos países, que sabem o quão “louco” eu sou sobre Wagner (eu dei palestras sobre o Anel e Parsifal) sobre o seu livro esclarecedor. Com os melhores cumprimentos, C. J I N A R A J A D A S A
P.S. Eu estendi as mãos sobre o mar para que lesse o que escreveu sobre o motivo de “Ewig war ich, ewig bin ich”. Ninguém antes parece tê-lo destacado pela sua beleza. Ficou tão marcado na minha imaginação que, anos atrás, quando acordei para o trabalho do dia, e os meus pensamentos subiam em aspiração, eu costumava repetir aquelas quatro curtas linhas alemãs, começando “Ewig war ich”, como uma oração: Sempre fui, sempre fui, sempre em doce êxtase de desejo, sempre por teu bem. Enquanto escrevo, encontram-se numa escrivaninha dois registos do Idílio de Siegfried, onde, como sabe, esse adorável motivo é o tema principal. Vou levá-los para a Índia, e providenciar para que, quando os meus “últimos momentos” começarem, os meus amigos os toquem (por falta de uma orquestra), para que eu possa ir para o Céu nas únicas asas que me satisfazem. Se alguma vez encontrares o meu velho amigo, Claude Bragdon, ele lhe contará sobre mim. Nós dois somos “peculiares” em alguns aspetos. – C. J.