Ah, o campo, o campo vitorioso, o excelente campo, está bem preparado.
Aí é onde as sementes, semeadas, não perecem verdadeiramente. O campo búdico, o campo vitorioso, é a mensagem alta do vitorioso. O mestre desenvolve os seus recursos para obter a posse de todos os seres. Estabelecido na esfera do nirvana, ele vê-se nesta terra. Tendo acalmado todo o mundo, ele purifica o recetáculo de um Buda. Ele liberta os novos e liberta os velhos. Tendo libertado todos os seres do triplo mundo e tendo fechado à chave as portas dos infernos, e tendo libertado os animais e os pretas, ele atingiu a calma neste mundo e a felicidade no seguinte.
Apesar dos eruditos, os antigos textos religiosos antigos são sempre pródigos em mistérios que tentam o estudante. E mais pródiga do que a Índia em textos sagrados originais duvido que exista outra terra, que se definiu a si mesma como “a da Retidão”.
Um destes livros espantosos pertence à tradição do budismo Mahayana. É o Shangata Sutra, encontrado, e muito numeroso, em manuscritos do século V d.C. e, como outros dos “discursos de Buda” do Mahayana, teria sido pronunciado pelo Thatagata no Pico do Buitre em Rajagriha aos seus discípulos bodhisattva, e depois transmitido oralmente numa cadeia ininterrupta. Esta obra foi encontrada em sânscrito, cotanês, chinês e tibetano, tal foi a importância que lhe foi atribuída. O facto de vários exemplares terem aparecido na descoberta de uma biblioteca no Paquistão (na Rota da Seda) em 1930, e com a antiguidade já mencionada de mais de mil quinhentos anos, destaca a sua relevância. Mais ainda quando na obra se diz que este texto foi aprendido por Siddhartha Gautama a partir de um Buda anterior.
Este sutra forma parte dos chamados dharma-paryayas, ou seja, ensinamentos transformadores, e os fiéis do Mahayana dizem que a recitação (imagino que com os sotaques que só os iniciados podem eficazmente transmitir) gera visões que ajudam no momento da morte e depois no bardo, ou passagem.
O próprio nome Shangata é um desafio para os investigadores. Em sânscrito, esta palavra alude ao vínculo que o carpinteiro estabelece entre duas peças de madeira, unindo-as. E talvez seja a mesma que indica o Shanga, ou comunidade (embora se diga que neste caso o segundo “a” é um “a” mais longo). Assim, tem sido chamado de Sutra dos Vínculos, como o famoso livro com o mesmo título do filósofo Giordano Bruno, e que estudam os políticos atuais, embora de uma forma ligeiramente sinistra. Shangata é também traduzido como “duas comunidades”: a celestial e a terrestre, que se unem na recitação do mesmo? A dos discípulos fiéis e a dos que se devem converter, Brahmanes e Jainistas, que são pintados de modo muito pouco favorável? A dos jovens e a dos anciãos, que são mencionados no início do texto?
De todos os modos, uma coisa que chama poderosamente a atenção é que não se deixa de falar do livro, ou revelação, nele mesmo, como se fosse, na realidade, um texto alusivo de outro texto muito mais secreto e verdadeiramente iniciático, que talvez não seja um discurso do Buda. Por exemplo, logo no início, diz o Buda:
“Sarvashura, existe um dharma paryaya chamado Sanghata que ainda está ativo neste planeta Terra. Se alguém ouvir esse Sanghata dharma paryaya, os seus cinco karmas ininterruptos serão purificados e nunca haverá de afastar-se da inigualável, perfeitamente completa iluminação”.
Algo que “ainda está ativo na Terra” é algo que já existe, que vai despertar, de forma mágica, com o poder da sua evocação e da sua palavra, graças à sua ciência e à sua perfeita pureza (quem mais, perguntamo-nos, seria realmente capaz de despertar esse poder? Não aquele que simplesmente lê o texto, por muito ênfase que lhe dê. Trata-se, quem sabe, de um ensinamento iniciático e o religioso é um véu, simplesmente com belas e válidas instruções).
A austeridade, embora com grande ornamentação retórica, dos textos Hinayana do chamado cânone Pali, é muito diferente da exuberância, do “folclore” e da prodigiosa decadência de imagens do mahayana, tão querido ao povo e ao religioso quanto o primeiro ao monástico. Isto faz também com que os textos mahayana sejam pletóricos em símbolos (permitindo uma linguagem que pode ser lida, como dizia H. P. Blavatsky, em diferentes chaves interpretativas, tais como astrológica, alquímica, fisiológica, etc.).
É uma linguagem tão exagerada que é difícil de aceitar com razão tudo o que diz, como o próprio Buda nos aconselha, deixando assim entre parênteses o todo ou grandes partes. Se a idade do kalpa ou eon (como por vezes é traduzido) é superior à do próprio Universo, segundo descreve a ciência, a leitura deste texto irá garantir, dizem, méritos – inclusive recordar todas as encarnações passadas – durante milhares destes ciclos. E a pessoa pode ter matado o seu pai, a sua mãe, introduzido a discórdia no Sangha, interrompido o trabalho meditativo de um bodhisattva, destruído stupas, etc., e com arrependimento sincero e a recitação acima referida é libertado de todo o Karma negativo que pairava sobre ele, e atinge a iluminação “antes que o galo cante”. A mente filosófica rejeita a credulidade religiosa por ser infantil.
Um entre muitos exemplos pode ser:
“Quem gerar fé no Mahayana não irá para destinos errados durante mil eons; não se tornará num animal durante 5.000 eons; não terá uma mente maligna em 12.000 eons; não nascerá numa província remota em 18.000 eons [que províncias podem existir numa mudança de eons quando se descreve que este dura mais de dez mil milhões de anos?]; vai ser um príncipe patrocinador do Dharma durante 20.000 eons, etc., etc.”
Deixemos então de lado tudo o que diz respeito aos próprios auto-elogios que faz o texto, que são desmedidamente desmedidos e examinemos alguns dos seus ensinamentos, tesouros sábios, tão bela e bondosamente oferecidos.
Diz que este ensinamento permite “praticar essa maneira do dharma pela qual prontamente escutam os antigos seres sencientes, purificam todos os seus obstáculos do karma, e os jovens seres sencientes empreendem grandes esforços para o dharma virtuoso e assim alcançam a superioridade, as suas ações virtuosas não degeneram, não degeneram de todo, e não irão degenerar”.
Explica-se que “há dois seres sencientes cujas expectativas ficam frustradas. Quais são estes dois? Estes dois são os seguintes. Um é o ser senciente que faz ações negativas ou que as ordenou serem feitas. O outro é aquele que abandona o santo dharma. Estes dois seres, no momento da morte, terão as suas esperanças frustradas”.
As ações humanas, dada a sua vontade e livre arbítrio, são sementes, mas não é a mesma coisa semear nos campos do futuro renascimento e morte, no tempo que tudo o devora, aos olhos do mundo e no mundo, que ante a verdade suprema e com ela como único juiz. Como belamente diz o texto: “Se se planta uma semente no campo supremo, no campo do Buda, grandes são os resultados”. Como disse o Professor Livraga, uma semente de boa vontade pode-se converter num bosque de bem-aventurança. E, no entanto, o que quer que façamos pelo mundo, e servindo o nosso egoísmo, é engolido como pelas mandíbulas de um Moloch devora-esperanças.
Há também menção, claro, no Mahayana, aos infinitos Budas do passado, presente e futuro, e os infinitos das infinitas estrelas, pois ali onde existe uma consciência sem mancha, plenamente aberta, como a flor de um lótus perfeito, existe um Buda. “Em cada uma das quatro direções há muitos Tathagatas, Arhats, Budas perfeitamente completos, como o número de grãos de areia nos 12 rios do Ganges”.
Numa cena recrimina milhares de ascetas jainistas pela sua falta de profundidade mental, pois a pureza de nada serve se for em vão e infantil, e faz com que fiquem aterrorizados perante o raio da Indra – quando em nada devia importar-lhes a morte – e diz-lhes que não são vitoriosos (que é o significado, precisamente do seu nome e do seu ideal, ser jina, vitorioso). Quando se queixam, o Buda desaparece, torna-se invisível e então proclamam o que toda a alma que busca dirá se na sua solidão não encontrar o Amado:
Não vendo o Bendito, disseram estes versos:
Agora não há ninguém que nos proteja.
Nem pai nem mãe.
Vemo-lo como um deserto.
Nem casa vazia, nem lugar onde estar.
Aqui também não há água.
Nem nenhuma árvore, nem nenhum navio.
Aqui nenhum ser é visto.
Sem um protetor, sente-se o sofrimento.
Sem ver o Tathagata, nunca exausto,
Experimenta-se grande sofrimento”.
Numa ocasião diz ao seu discípulo de bodhisattva, Sarvashura, que deve fazer uma viagem através dos mundos interiores:
“Filho da linhagem, por qualquer meio hábil dos Budas, Sarvashura, vê, busca no universo nas dez direções e procura onde os Tathagatas aparecem e onde os assentos estão dispostos”.
Deve chegar ao Universo do Lótus Insuperável, onde estão os tronos que aguardam as almas que querem ser reis de si mesmas, eternamente. E pergunta o discípulo: “Ó Bendito, com o poder de qual magia devo ir, através da minha própria magia ou pela magia do Tathagata? O Bendito falou: “Sarvashura, vê pela bênção da força da tua própria magia. Sarvashura, regressa pelo poder da magia do Tathagata”.
Como diz Plotino, cada um deve chegar pelo poder do seu próprio Nome secreto, pelos seus próprios esforços e méritos, com o despertar dos seus próprios poderes espirituais. Mas enquanto como uma flecha, atinge o alvo da Grande Bondade, fecundando-a, tornar-se-á, com a sua irradiação, para derramar a sua bênção sobre todos, como nas Cinco Chagas de Cristo, quando derramam o sangue que dá vida espiritual a todos os seres sencientes.
E em relação aos tronos que nos esperam no Universo do Lótus Insuperável, e que tanto nos recordam os tronos que esperam junto ao Cristos na Pístis Sophia, o texto diz, com a voz de Sarvashura:
“Um único Tathagata estava presente, fiz prostrações com a minha cabeça aos pés santos desse Tathagata. Quando lá fui, um trono surgiu, e então fui para esse trono. E, Bendito, nesse tempo, muitos tronos surgiram, mas não vendo ninguém ir para esses tronos, disse a esse Tathagata, “Bendito, não vejo nenhum ser senciente em nenhum destes tronos”. E esse Tathagata disse: “Os seres sencientes que não produziram a raiz da virtude não têm poder para se sentar nesses tronos”.
A reflexão sobre a dor é muito interessante. A vida magoa-nos, em resposta à nossa ignorância, e por isso somos a causa da dor que a vida, como um eco, nos inflige. Mas não é licita a vontade ser causa da dor voluntariamente, prejudicar-nos desnecessariamente, o que é, aliás, tão típico de ascetismo mal compreendido. Refere-se também aos suicidas.
“Aquele que se prejudica a si próprio irá para os infernos do sofrimento. Esse vai lamentá-lo e chorar em voz alta, e por isso, vai cair no chão”. Já que, por difícil que seja, temos de permanecer firmes perante a dor se quisermos aprender serenamente o seu ensinamento e não ser matriz de mais dor ainda.
E aqueles que não abriram a porta do templo, ou receberam um raio de luz e fidelidade de, e para quem o fez, como irá guiar os outros, converter-se-á num “falso guru”, numa sombra que espreita nas pregas do tempo aos incautos. Porque, embora se refira àqueles que não receberam a iniciação do Sutra Sangatha, é evidente que este é o significado mais amplo:
“Eles são incapazes de pôr em movimento roda do Dharma. São incapazes de atingir o gongo do Dharma. Eles são incapazes de sentar-se no trono do leão do Dharma. São incapazes de entrar na esfera do nirvana. Eles são incapazes de iluminar com incontáveis raios de luz”.
Ou aqueles que confundem o sentido, porque a sabedoria da cabeça os deixa sem resposta à sabedoria do coração, sofrem os mesmos impedimentos:
“Tendo escutado muitos sermões sobre o Dharma, eles converter-se-ão ociosamente em orgulhosos, eles falam várias palavras incoerentes. Vencidos por um interesse pessoal e pelo egoísmo, eles mesmos não escutam o Dharma, não o proclamam. Se alguém lhes explica um Sutra ou uma estância, ou inclusive uma comparação, eles nem o sustêm nem o escutam atentamente dizendo: “Nós sabemo-los”. Qual é a razão disso? É por esse orgulho que estão apaixonados pela sua própria escolaridade. Esses que se associam com a gente comum e tonta, e não ouvem esse discurso conectado com o Dharma, eles estarão apaixonados com a sua própria escolaridade. O homem dessa categoria dispõe dos seus próprios poemas, dispõe dos seus próprios trabalhos literários e narrativas. Eles causam desgraça ao mundo inteiro e a eles mesmos. Inutilmente, eles comerão muitas dádivas públicas também, mas depois de comer eles não as digerirão propriamente. Nesse momento de morte, o grande medo será seu e esses seres dirão então, “Muitos terão sido treinados por ti neste conhecimento de artes. Como é que tu não és capaz de formar-te a ti mesmo? Ele lhe dirá isto a eles, “Amigos, agora não é possível formar-me por mim mesmo”.
Quem, pelo contrário, confiando no sentido da vida, encontra a plenitude da mesma, pode chamar-se de feliz:
“Quem, depois de confiar no Dharma, diz o seguinte: ‘existe um Dharma que está perfeitamente de acordo com as coisas como elas são’ – o grande resultado da maturação da sua felicidade será a insuperável felicidade do Dharma”.
Muito belo é também o conceito do Buda interior, que é e que espera no final do Caminho, e graças ao qual rendem a sua devoção e gratidão ao Tathagata:
“Então, nessa altura, todos eles, tendo-se levantado acima da cabeça do Bendito, derramaram sobre o Bendito várias flores. Eles completaram o Tathagata. Eles produziram a noção de um Buda no seu próprio corpo (…) Eles disseram uma palavra, então, ‘O asceta Gautama tem uma grande realização, ele é um grande campo, um salvador do mundo, ele alcançou a realização do poder do samadhi; conhecedor; ele está na posse da discrição, que liberta tais seres do samsara, gradualmente, através de hábeis recursos. (…) Em seguida, o grande ser Bhaishajyasena (…) disse isto ao Bendito, ‘Bendito, qual é a causa, qual é a razão pela qual estes devaputras produzem estas palavras, levem a cabo muitas proezas e, em verdade, com muitos elogios de virtude, louvem o Tathagata’? O Bendito disse: “Ouve, filho da linhagem. Eles não me elogiam a mim. Louvam o seu próprio corpo [da Eternidade]. Colocarão o seu próprio corpo no trono do Dharma, estabelecerão o seu próprio corpo no assento supremo do Dharma, enviarão raios de Dharma dos seus próprios corpos [da Eternidade], eles serão abraçados por todos os Budas. Tendo realizado a realização de uma iluminação insuperável e perfeitamente completa, ensinaram o Dharma”.
Há várias parábolas muito significativas neste texto, tais como a das duas árvores plantadas, ou a dos pais que arruínam a sua vida ao suplicar-lhe pelo seu filho que temia a morte, ou metáforas estranhas, como os nascidos das árvores sem sentido, ou a do prisioneiro que incendeia à sua cela, mas que merecem um artigo à parte, bem como a descrição do processo de morte e a diferença da morte entre aqueles que escolheram o caminho de “divide e vencerás” e o de “unir para resistir”, ou seja, os regidos pela mente egoísta (Kama Manas, na Índia) ou a generosa e idealista, que semeia nos campos de mérito (Manas).
E dado que a religião budista, como a cristã ou a muçulmana, é própria da Era de Peixes, e a alma deve lutar contra a putrefação que define a própria natureza do material, o Buda descreve o corpo (sem a presença da alma, ou independente desta):
“Flamejante, residindo no fogo, gargajeante, descarregando secreções, frequentando cemitérios, estúpido, pesado de cargas, completamente em sofrimento desde o momento do nascimento, completamente vencido pela vida, morte e separação do que é querido. Amigos, estes são os nomes de um corpo (…) O corpo vagueia com completa distorção onde não há felicidade e sem sequer saber onde se encontra a felicidade. A felicidade é oferecida no campo búdico. A roda do Dharma é o melhor remédio. A conduta ética e a verdade das condutas éticas são a voz pura do Tathagata”.