O Mundo, Lokavagga – Comentário ao capítulo XIII do Dhammapada

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A Estância, ou Capítulo, XIII do Dhammapada tem o título de “O Mundo”, Lokavagga.

H.P. Blavatsky afirma, no Glossário Teosófico, que a palavra loka significa “mundo”, “terra”, “universo”, “lugar”, “região”, “plano”, “esfera de existência”, “mansão”, “céu”, “paraíso”, e ainda alguns outros significados que vão para além do que nos interessa. Considerando que vagga, em pali, significa “grupo”, “parte” e “capítulo” de um livro, vamos tratar, portanto, do capítulo do Dhammapada que trata sobre a temática do mundo, ou realidade oposta e em conjugação com o eu.

Estátua de Gautama Buda em Seokguram Grotto, Gyeongju, na Coreia do Sul.
Imagem de Richardfabi em Wikipedia (CC BY-SA 3.0).

Sendo composto este capítulo por 12 slokas, ou versos, abarca dentro da obra os números 167 a 178. E, como em toda a obra, está banhado pela excelsa moral típica do budismo que tem a finalidade de levar a consciência, o saber e os actos humanos para um plano mais elevado do que aquele em que normalmente andam mergulhados. De facto, o objectivo não é fazer um estudo ou exame do mundo que nos rodeia, mas sim reflectir sobre a nossa relação com esse mundo. E bem sabemos que toda a obra que é o Dhammapada, representa um guião para a nossa acção na vida, transmitindo, com os seus slokas, o perfume de uma elevada ética e moral.

Passamos a uma leitura e análise de cada verso.

167. Não percorras um ignóbil caminho de vida! Não vivas na negligência! Não sigas opiniões falsas! Não sejas apegado ao mundo!

A mensagem é directa e qualquer um pode percebê-la sem grandes rodeios. No entanto, para um exercício de auto-consciência, é conveniente olharmos e re-olharmos para os ensinamentos e interrogarmo-nos, avaliando a discrepância que pode existir entre os nossos pensamentos e acções.  

Um caminho ignóbil está evidente em quem rouba ou explora os outros; nestas situações a clareza é total. Mas pode haver zonas “cinzentas” e convencemo-nos que fazemos o bem quando na prática os nossos egoísmos turvam os nossos actos. Não pode haver nobreza sem honestidade e toda a mentira ou falsidade, mesmo inconscientes, são areias movediças onde nos podemos entulhar… Quantas vezes uma mentira não enrola e ata na caminhada?

Viver na negligência é não cumprir com o nosso dever. E aqui creio que, entre os nossos limites e a quebra de limitações, muitas vezes nos quedamos passivos ou não tão combativos, e isso é uma forma subtil de negligência. Reafirmo que o maior perigo não são os grandes defeitos que se conseguem ver bem à distância e que, por isso, podem ser mais facilmente combatidos. O maior problema são os defeitos subtis de quem está a caminhar e não se apercebe das subtilezas que ocorrem no seu interior.

Quanto às opiniões falsas, tão útil é nesta época de “pós-verdade”, onde distinguir o claro do escuro é tarefa difícil. Aconselha não seguir opiniões falsas, e aqui vemos o perigo da caminhada humana: não basta seguir o que os outros dizem, é necessário seguir o que nos dita a consciência sobre o que é verdadeiro, pelo menos dentro de nós. E pouco a pouco, com essa verdade no coração, mesmo que nos equivoquemos, vamos construindo o caminho individual que tem de estar integrado no colectivo.

E, por último, neste verso, se estamos apegados ou dependentes de coisas do mundo, é lógico que a nossa consciência não consiga ascender aos altos voos, aos quais está destinada. O apego é sempre identificação com algo externo, é a sobreposição do “ter” sobre o “ser” e, como tal, mergulhar no mundo e não ter capacidade de elevação da consciência para um maior entendimento de toda a realidade.

168. Ergue-te e não estejas desatento. Segue o dharma[1]. Quem segue a senda do dharma vive feliz neste mundo e no seguinte.

169. Segue a senda da virtude; não sigas um caminho errante. Quem segue a senda da virtude vive feliz neste mundo e no seguinte.

Monges descem para seus quartos após as orações da noite em Haeinsa. Imagem de joonghijung  em Wikipedia (CC BY 2.0)

Juntamos este par de versos, pois estão construídos numa forma muito comum na obra, havendo até um capítulo específico, os versos gémeos, que usam este formalismo numa espécie de jogo de opostos onde a solução fica clara por esse contraste. 

No primeiro, 168, o foco é precisamente a atenção: não estejas desatento. No seguinte é a perseverança em não se desviar da senda. A atenção permite manter-nos no caminho do dharma, da virtude, da lei, da harmonia. Entre as inúmeras possibilidades de acção, o nosso caminho tem de ser regido por esta captação interior de uma Lei Cósmica que rege todos os seres e que os levam à sua plenitude, à realização. Os seres humanos têm o seu dharma na realização da sua própria humanidade, naquilo que permite afirmar que somos humanos conscientes, ao contrário das possibilidades de desvio desse caminho e de despender as energias com desejos, instintos, paixões desenfreadas. Quem segue o dharma, caminha equilibradamente, e os seus passos são leves movimentos na única direcção possível para a realização plena. Quem, por ignorância, não consegue seguir o dharma, segue um caminho errante, experimentando muitos desvios e esbarrando com os sôfregos muros da insatisfação, saboreando os amargos frutos das suas próprias experiências até que essa dor desencadeie a consciência e saber, e o faça seguir a senda do Justo Meio. 

170. Vê o mundo como uma bolha; considera-o como uma miragem. O Rei da Morte nunca encontrará quem assim vê o mundo.

171. Vem e vê este mundo como um dourado coche principesco onde se submergem os tolos e os sábios não tocam.   

Continuamos e agrupamos mais dois slokas. Entra aqui o conceito oriental de Maya, ilusão. Esta Maya, como natureza, refere-se a tudo o que conseguimos captar com os sentidos e que verificamos não escapar à acção do tempo. Nada está fixo, tudo se movimenta, tudo se transforma. A vida manifestada é um grande teatro de formas mutáveis que vão desfilando perante o olhar contemplante da nossa consciência. Claro que, por detrás destas formas mutáveis, há sempre uma base, uma substância como suporte para toda esta manifestação de vida. Mas esta matéria-prima, como unidade, está num nível de percepção muito acima dos órgãos dos sentidos. Yama, o rei da morte, não encontrará quem assim vê o mundo na sua essência imutável, pois a morte refere-se à contínua transformação das formas. Nesta dimensão existencial, o senhor do Tempo é quem governa e impera de forma implacável, nada se lhe escapa. Mas a nossa consciência, o voo da nossa alma, pode experienciar dimensões além deste ilusório mundo de barro. Neste mundo de barro que aparenta ser um dourado coche, mergulham os ignorantes como “a borboleta atraída pela deslumbrante chama da tua lâmpada nocturna”, mas que “está condenada a perecer no viscoso azeite.”[2] Pelo contrário, os sábios, conhecendo a natureza, já não se aderem às coisas passageiras e, muitas vezes, atraentes do mundo sensível.

172. Quem primeiro foi desatento e depois torna-se vigilante, ilumina o mundo como a lua aberta de nuvens.

173. Quem ultrapassa actos erróneos com boas acções, ilumina o mundo como a lua aberta de nuvens.

Mahayanabuddha. Licença Creative Commons

Eis aqui a maravilha da evolução humana! Ninguém se pode escusar ao Caminho e todos haveremos de o percorrer. Quando se processa esta transformação alquímica no nosso interior, sente-se essa passagem da sombra para a luz. Pode ainda não ser a plena Luz do Sol que nos dá a possibilidade de compreender tudo o que está em nosso redor, mas já é Lua livre de nuvens que, reflectindo nas águas, nos dá clara indicação da Senda e, com o seu exemplo de crescimento interior, ilumina quem está em redor.

174. Este mundo é cego. Poucos são os que conseguem ver as coisas como elas são. Tal como os pássaros que escaparam da rede, poucos são os que vão para o céu.

A expressão “este mundo é cego” reforça a imagem deste plano de existência como um multifacetado campo de experimentação, onde a saída está numa dimensão acima, com a elevação da consciência e não na multiplicidade possível de um caleidoscópio. Quem eleva a consciência? Esses são os verdadeiros sábios da condição humana. Sábio é qualquer um que seja especialista numa arte ou ciência concretas, mas sábio da essência humana são aqueles amantes da sabedoria que foram escalando a sua acrópole interior, num esforço heróico de conquista do invisível que há em nós. Infelizmente, na sua maioria somos pássaros aprisionados nas redes do mundo.

175. Os cisnes voam na senda do sol. Quem possuiu poderes psíquicos (siddhis) atravessa o ar. Os sábios, após conquistarem Mara e as suas hostes, são levados para fora deste mundo.

O poder é a capacidade de Realização de cada ser na sua respectiva etapa evolutiva e que deverá ser atingida durante um determinado ciclo de manifestação. Os cisnes voam na senda do sol, os detentores de poderes psíquicos, ou mediúnicos, atravessam o ar, ou plano astral. Só os sábios conseguem alcançar planos de existência espiritual além deste mundo manifestado. Mas, para isso, tiveram de conquistar-se a si mesmos, adquirir perfeito auto-domínio através da conquista das forças da natureza simbolizadas em Mara e nas suas hostes. Se a finalidade última, ou realização do nosso Ser, é este acto de “ser levado para fora deste mundo”, isto só será possível, ou será uma realidade apenas, após a auto-realização.

176. Quem viola a Lei, quem profere mentiras, quem escarnece do outro mundo, não há mal que não possa fazer.

Eis a grande tragédia da ignorância! A não consciência de uma Lei que rege e direcciona todo o Cosmos; o não respeito pelo ignoto mundo invisível dos mortos; a não percepção do perigo de faltar à verdade e de espalhar a mentira, tudo isto é sinal de uma alma ignorante, não respeitadora, blasfema até, e a este tipo de natureza humana não há mal que não possa fazer. Daí que o caminho evolutivo comece com uma percepção do Bem, por muito ténue que seja. Todas as “morais” emanadas das religiões, frutos de uma Ética Universal, visam encaminhar os actos humanos nesse sentido de um Bem, que obviamente terá de ser sempre Comum e, sempre que assim não seja, já não é partícipe dessa Moral Intemporal. A tão simples e conhecida fórmula de “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” é o princípio da Grande Caminhada.

177. O não caridoso nunca irá para o mundo dos deuses, nem os tolos louvam o altruísmo. Mas o sábio que se satisfaz com a generosidade torna-se abençoado no outro mundo.

A vida é movimento, contínuo fluir de energia que não se estanca. Qualquer barreira ou obstáculo que impeça ou prejudique este fluir está contra este desenvolvimento contínuo. A generosidade humana é integrar o movimento perpétuo da Natureza visível, e a dificuldade em integrar está relacionada com o nosso egoísmo, a separatividade que está em nós. É participar do movimento, do contínuo fluir da vida, com actos caridosos e não apenas caritativos, isto é, com um sentimento de caritas, ou compaixão, que se distancia totalmente do “dar porque já não preciso”, para se fazer uno com o “dar como benefício, ou ofício do bem” para contribuir para a vida em meu redor.

Esta é a virtude base para iniciar o Caminho e, claro, quem não a pratica nunca chegará a planos mais elevados de consciência. Os tolos não louvam o altruísmo pois não têm uma visão ampla de finalidade para além dos efeitos imediatos, só os sábios percebem o destino além do momento presente. 

178. Melhor do que a soberania sobre a Terra, melhor do que ir para o Céu, melhor que o domínio sobre todos os mundos, é o fruto do primeiro passo na Senda.

E fechamos com o último sloka deste vagga que encerra duas ideias interessantes. Mais importante do que o resultado ou destino, a finalidade que se alcançará, a meta a atingir, os prémios a receber, as palmas a eclodir e a glória da conquista a vibrar, melhor do que tudo isto é o começo! Como se chega à meta se não se inicia o caminho? E essa alegria, esse sentimento de alguma paz interna por esses passos iniciais são os cânticos celestes que a alma já escuta ao longe.

Por outro lado, esses passos iniciais implicam um esforço heróico, pois o começo de algo é sempre mais esforçado do que a sua continuidade. Na continuidade, o ritmo já está implantado, mas ao começar algo há que romper com a inércia. Muitas vezes nos iludimos projectando o empenho inicial para toda a jornada, mas essa é uma lógica básica que não explica a realidade vital. Quanto mais treino, mais aptidão e menos esforço físico aparente.

Talvez, quem sabe, esse valor inicial para o começo tenha de ser tão intenso para que as trompetas celestes possam soar aos ouvidos da alma.

E quem entra na Senda cumpre com o dharma humano. Que maravilha é ver a borboleta ser borboleta e a roseira dar rosas!


[1] Verdade, virtude, caminho do meio.

[2] “Voz do Silêncio”

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