O Kaushitaki Upanishad e a Viagem da Alma ao Coração do Real

“Dou a volta completa dos Deuses. Dou a volta completa do Sol"
1 Lotus. Pixabay

A palavra Upanishad foi traduzida de muitas maneiras, usando as suas raízes sânscritas, desde as “Correspondências Ocultas”, como também o faz, por exemplo, o professor Juan Arnau, e também “Perto do Todo” ou “Aos pés do Mestre”.

Os Upanishads aparecem vinculados a esta “Bíblia mais antiga da Humanidade que são os Vedas” aos quais se pode atribuir uma antiguidade muito diferente, embora os mais importantes pertençam, como é lógico, ao período Védico.

O Kaushitaki Upanishad pertence ao Rig Veda e este nome, Kaushitaki, é de um Mestre que vê no Sol e no alento vital os símbolos de Brahman, senão o próprio Brahman.

Consiste em quatro partes e não é muito extenso. Na edição Atlanta, que estou a seguir, ocupa 30 páginas do livro.

Como em outros Upanishads, estes são ensinamentos de reis e, portanto, kchatryas, aos próprios brahmanes, sobre os mistérios do real e sobre os seus próprios rituais e filosofia.

Em geral, a parte mais conhecida, e sobre a qual versa este artigo, é a primeira, onde a reencarnação explica-se de uma forma sui generis, embora possamos dizer que, de um modo velado, isto é, alegórico, indica a viagem da Alma pelos diferentes planos de consciência do Universo, as diferentes esferas do Ser, ou, ao contrário, o seu retorno à Terra, vítima do Karma, para continuar a arrastar, como o escaravelho, símbolo do discípulo no Egito, a sua esfera de destino e matéria que deve chegar a converter-se numa esfera perfeita. E assim se reproduz na terra o mistério dos céus, da mesma forma que o dito escaravelho orienta-se pela Via Láctea no seu “caminho a Casa”.

Vemos presente desde as primeiras palavras – e num enigma em que o rei põe à prova o filho do brahmán que se converterá no seu discípulo – o facto de que o sacrifício é um meio para a viagem da alma a outros mundos, o fogo estabelece o vínculo e as formas mentais criadas serão a escada ou o veículo ou o barco que permite remar naquele mar sem margens.

Filho de Gautama, existe no mundo para onde me hás de enviar um refúgio seguro ou, pelo contrário, conduz a outro lugar? Peço-te, não me envies para um mundo nefasto.

Também neste texto a jornada da Alma é aquela que começa com a morte. E toda a filosofia do mundo sublunar que encontramos em Aristóteles e sucessores na Idade Média, também encontramos aqui. E isto é obviamente um símbolo:

“Aqueles que partem desse mundo não é senão à Lua para onde viajam (…) A Lua é a porta do mundo celestial. Ela deixa passar a quem conhece as respostas, enquanto que a quem não as conhece transforma-os em chuva e fá-los retornar a este mundo, onde renascem em diferentes condições, dependendo das suas obras e conhecimentos”.

Lua Cheia. Pixabay

E, claro, os mistérios da Lua são os da Psique humana e da sua mente banhada na sua própria emotividade, cujo amnios rodeia toda a Terra. Um labirinto, e como no livro egípcio A Oculta Morada, há que conhecer as respostas para as perguntas sobre os segredos da vida. Se não, a alma, tal como a chuva, fertiliza novamente a matéria convertendo-a na natureza viva para seguir o seu caminho de experiência e perfeição. Também nos mistérios astecas, a chuva de Tlaloc, vertical e de fogo, representava, numa chave, a reencarnação. E o seu paraíso, aquele luminoso e feliz, em que vivem as almas antes de serem imperiosamente chamadas, nolis volendi, para uma nova oportunidade de ação e redenção.

Diz-se que dessa “primeira fonte”, a Lua, é de onde descendem os Ancestrais ou Pitris, cujas formas abrem o caminho para a evolução da humanidade nesta Terra e, por isso, são honrados. Nesta Filosofia Védica, aquele que nasce e entra na matéria é Atman, na matriz, ou seja, filho e vítima do Tempo:

“Nasci, fiquei gerado, como o mês que faz treze,

Pelo pai ao qual devem a sua existência os doze “

A Roda dos Signos do Zodíaco, e por tanto Ele é o Ano, o Tempo, e por isso, por ser seu filho, encarnado na matéria, e seu pai, antes de o ser, na sua eternidade e perfeição, Atman diz que ele próprio é o tempo e pede às estações, ao girar a sua roda, que o conduzam de novo ao imortal. E que por ser isso, ele mesmo é a Lua, é filho de Saturno, como a Lua, e como ela arrastada pelos ciclos e pela Terra:

“Quem sou eu senão tu?”

E, dizendo isto, a Lua o deixa passar, e após tomar o caminho que conduz aos deuses, o deixa chegar ao mundo do Fogo … ”

Talvez numa outra chave a Lua seja símbolo de buddhi, luz espiritual, do discernimento, a veste pura do próprio Atma. Mas como Atma estava nos labirintos da mente, esta pureza e sabedoria serão aquelas que o permitirão sair, tal como no mito de Teseu o Fio de Ariadne. Sem identificar-se com ela, sem a sua ajuda, ele não conseguirá ir mais além deste labirinto.

Nas diferentes esferas ou céus que percorre a Alma, chega ao Oceano de Ara, uma palavra sânscrita que  significa o raiode uma roda e, também, com o primeiro “A” longa, “Saturno”, “Bronze”, “Distância” e inclusive ” Marte” ou “óxido de ferro” e também “cessação”, “descanso”. Oceano que deve atravessar mentalmente e no qual se afundam aqueles que não têm o conhecimento necessário, diz o texto. Atravessa o rio Vijara, ou seja, “sem velhice”, e aqui superou o Tempo e as suas exigências e, portanto, o Karma. A Alma alcança a Juventude Eterna, liberta-se da ação da Roda da Necessidade, entra nos umbrais de Brahman:

“E como o cocheiro olha desde o alto para as duas rodas da sua carruagem, de forma semelhante desde o alto o dia e a noite, as boas e as más ações [porque esgotou os seus frutos nefastos, redimiu-se, equilibrou a balança] e todos os pares de opostos. Esse homem libera-se assim das suas boas e más ações e, conhecendo Brahman, a Éle se dirige.”

Chama, Luz. Pixabay

E não termina assim o voo da Alma para Brahman, apesar de já não arrastar nada do barro da terra. Por isso, depois de ser acolhido por ninfas celestes que o adornam, perfumam, ungem, vestem e outorgam frutos (500, 100 de cada e em relação a cada um dos sentidos e a Mente, mas já orientados para o espiritual, por isso a primeira que o acolhe é Manasi). O próprio Brahman lhes disse: “Corram em direção a ele. Para minha glória chegou ao rio da Eterna Juventude e jamais envelhecerá”. E assim disfarçado e adornado por todas as graças das ninfas celestes “o conhecedor de Brahman dirige-se a Brahman”

Com estes dons, que parecem ser as influências celestes do seu próprio Eu espiritual (Atman), continua a avançar em direção ao coração do Real (Brahman). E agora, quem o envolve não são as suas próprias irradiações mas as do Coração da Existência:

“Chega assim à árvore Ilya e a fragrância de Brahman o envolve. Chega à paragem em Salajya, e o sabor de Brahman o envolve. Chega à mansão Aparajita e o esplendor de Brahman o envolve. Chega com os guardiões Indra e Prajapati e ambos retrocedem ante ele. Chega à estadia Vibhu e a glória de Brahman o envolve. “

Chega então ao Trono confecionado com os cantos dos Vedas, o Trono de Vicakshana, “olhar penetrante”, porque:

“Este trono é sabedoria, a sabedoria que outorga um olhar penetrante”

E a partir daí, no leito em que Brahman, o Coração do Real, descansa, que é o alento vital e cujas patas dianteiras são o passado e o futuro, e as suas patas traseiras a abundância e o alimento, etc.

Brahma. Creative Commons

E este texto sublime continua, quando a alma sobe ao leito com o seu pé direito (com o que figura o hierosgamos do Amante e do Amado, do Logos e da sua irradiação lançada na caverna do espaço e do tempo e que retorna à Fonte) :

“Então Brahman pergunta-lhe:” Quem és tu? ” ao que ele deve responder:

“Sou filho do tempo e das estações. O espaço é a matriz de onde nasci como sêmen para uma mulher, como esplendor do ano, como o atmán de todas as criaturas. Tu és o atman de todas as criaturas, e o que tu és, isso eu sou. “

“E quem sou eu? pergunta então Brahman.

Ao que deve responder:

-O Real.

-E o que é o Real?

-O reverso dos deuses e das funções vitais, isso é, sat. Por sua vez, os deuses e as funções vitais são tyam. A tudo isso se refere à palavra “real”. Tudo isso abarca e tudo isso és tu. “

E depois de perguntar-lhe Brahman como conhece as suas diferentes dimensões e a Alma responde-lhe à última:

E como conheces os meus pensamentos, os meus objetos de perceção e os meus desejos?

Com a consciência “

Brahman finaliza:

“Na verdade alcançaste o meu mundo. É todo teu!”

“Qualquer conquista, qualquer realização pertencem a Brahman. Embora pareça que é o próprio que a atinge, que a conquista, que o conhece, é Brahman quem o faz”

Uma belíssima afirmação, semelhante, sem dúvida ao “Só Deus é vencedor” dos cavaleiros medievais, ou ao “Non nobis, non nobis, sed nomine tuo da gloriam” dos místicos e heróis templários.

A Terra não verá a sua face, pois converteu-se no Eu mesmo, eterno e universal.  

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