O Domínio do Arco

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Primeiro estabeleça-se em si mesmo, e somente depois aja.

 Introdução

Dentre uma série de versos místicos compilados no Bhagavad Gita, esta é uma das instruções fundamentais que Krishna transmite a um Arjuna perturbado, quando confrontado com a perspetiva de matar os seus próprios primos no campo de batalha de Kurukshetra, a fim de restabelecer o dharma no reino.

A tradição filosófica sugere que por trás deste enredo reside uma dimensão mais profunda, revelada apenas àquele que sabe desvendar os seus mistérios, voltando-se para dentro, para o Kurukshetra interior, contido no ser humano. Capturada na elaborada mitologia, está uma verdade fundamental sobre a condição humana, caracterizada por uma batalha interior entre os Kauravas (os inúmeros vícios humanos, e a causa da ignorância) e os Pândavas (o potencial divino), entre a não-verdade e a Verdade.

Estátua de Arjuna. Creative Commons.

A fim de manobrar através deste campo de batalha interior, o protagonista Arjuna serve como símbolo de um herói humano – um poderoso guerreiro realizado especificamente como um lendário arqueiro. Assim, quando a mesma tradição oferece um volume dedicado à arte e à ciência do tiro com arco, isso certamente garante um olhar mais profundo, para quem procura “estabelecer-se em si mesmo”, como um passo fundamental na preparação para entrar na batalha interior.

Dhanurveda

A palavra Dhanurveda traduz-se literalmente como “Conhecimento do Arco”. É considerado um texto de apoio que complementa o Yajur Veda (Livro do Ritual), um dos 4 cânones primários da Literatura Védica. À primeira vista, parece ser um tratado técnico que documenta a ciência e prática antigas do tiro com arco. Ele detalha elaboradamente os vários tipos de arcos, flechas, alvos, posturas e os diversos usos de cada um, e inclui até recomendações sobre momentos auspiciosos para se iniciar o estudo do tiro com arco. Aos alunos é dada uma formação holística completa, para que estejam preparados para responder a todas as situações.

No entanto, reduzir Dhanurveda a um simples catálogo de armas e estratégias de batalha seria um erro. Como em qualquer prática, é fácil imaginar que a disciplina e a prática necessárias no treino de tiro com arco facilitam o desenvolvimento do ser humano, física e mentalmente. Embora este seja, por si só, um trabalho audacioso, quando considerado no contexto da tradição védica, parece que mesmo este trabalho difícil anseia pela preparação de um veículo bem formado; em última análise, destina-se a ser usado para transportar algo de valor; neste caso, uma consciência humana purificada.

A Formação do Veículo

Dr. John Douillard, autor e estudioso do Yoga e Ayurveda, diz: “Quando se faz a puxada completa de um arco na tentativa de disparar uma flecha… É preciso segurar e estabilizar a flecha e a corda num estado de absoluta quietude ou silêncio. O menor movimento da corda criará um voo exponencialmente distorcido da flecha.”

Há que se notar que não basta compreender isso. Isso requer prática e perseverança verdadeiras, pois geralmente a mente é reativa, calculista, sempre ocupada com o passado, antecipando o futuro, e raramente no próprio controlo. Podemos descrevê-lo como concentração, ou como uma habilidade de afastar distrações causadas pelos apegos. Douillard explica: “No minuto em que deixamos a mente vagar, distrair-se ou pensar no resultado, a mente liga-se instantaneamente aos frutos dessa ação. A mente procurará a recompensa, a satisfação de atingir o alvo, o retorno do investimento… cada ação torna-se uma manipulação do ambiente para alcançar uma recompensa.

Competição de arqueiros Mughals, Índia. Licença Creative Commons.

E assim, na prática de empunhar o arco, o aluno começa a transformar-se, com autocontrolo, concentração e estabilidade interior. A motivação de cada ação é gradualmente purificada, de tal forma a não emergir do apego, medo ou antecipação, mas da serenidade. É a partir deste estado meditativo de “estabelecer-se no ser” que o arqueiro é capaz de realizar a ação certa, a libertação da sua flecha. Esta é talvez a parte mais importante da meditação, muitas vezes negligenciada nos nossos tempos – o imperativo de agir. Tal ação correta torna-se a recompensa em si mesma.

Tiro com arco interior

Pode-se recorrer ao Manduka Upanishad para revelar mais claramente o objetivo maior, um propósito espiritual, desta prática solitária.

dhanur gṛhītvā aupaniṣadam mahāstraṁ śaraṁ hy upāsā-niśitaṁ saṁdadhīta,
āyamya tad-bhāvagatena cetasā lakṣyaṁ tad evākṣaraṁ, saumya viddhi.

praṇavo dhanuḥ, śaro hy ātmā, brahma tal lakṣyam ucyate,
apramattena veddhavyam, śaravat tanmayo bhavet.

Pegue o poderoso arco do Upanishad, coloque sobre ele uma flecha [Mente], afiada e reta,

Puxe a corda do arco, mente imersa em Brahman, o objetivo, deixe voar e perfurar [saber] de forma infalível.

A prática é o Arco, tu és a Flecha, o Brahman [Verdade] é o teu alvo,

Acerte-o infalivelmente, torna-te um com ele.

Arjuna a conquistar Draupadi na sua swayambara. Ele tem que acertar um peixe girando em uma roda com uma flecha vendo apenas seu reflexo.

Constatamos, portanto, que, em última instância, a tradição humana tem sussurrado incessantemente através dos tempos a necessidade de atravessar a distância da ignorância, através da aquisição de conhecimentos vivos, uma realização interior que resulta da experiência. O domínio do tiro com arco, e o sistema descrito na Dhanurveda, pode servir como uma prática simbólica e formativa, para “estabelecer-se em si mesmo”, transcendendo as máscaras transitórias, de forma a facilitar esta transformação.

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