No capítulo VII do Dhammapada, do caminho da lei, senda do Dharma, as palavras de Buda, o iluminado, levam-nos ao estado de consciência de Arahat, o «muito digno», «aquele que merece divinos louvores», conquistou altos méritos e já vê as portas do Nirvana diante da sua alma imortal.
É o mestre de sabedoria, o adepto, aquele que tendo-se libertado de todas as ligações à roda do «Samsara», dá um abraço infinito aos seres do universo, nesta e noutras dimensões.
Diz-nos o texto que o Arahat está livre da paixão, da tristeza, de qualquer apego ao mundo onde vivemos. Está num caminho bem-aventurado livre de «asava», ou seja, de tudo o que corrompe, de tudo o que polui, de todo o desejo do ego, da necessidade de ser apreciado, de querer opinar sobre tudo, de auto-alegrar-se na ilusão dos sentidos e na «maya» do mundo. Assim a sua alma torna-se tranquila através da realização da verdade, discernindo o que é real do que é ilusão. Dizem-nos as palavras imortais do Iluminado:
«A mente do Arahat torna-se tranquila, a sua palavra e as suas acções são calmas. Assim é o estado de tranquilidade daquele que atingiu a libertação através da realização da verdade.» (VII, 96)
Imperturbável como o «Pilar de Indra»[1], firme e puro de carácter, transparente como as águas límpidas de um lago, são outras características naturais de um Arahat, esse mesmo que destrói «todas as influências do mal», que desiste «de todas as ambições», e que se torna no mais Nobre, um grande e autêntico arya.
Esteja onde estiver, na aldeia ou na floresta, no vale ou na montanha, é ele que irradia o seu perfume por todo esse lugar, que por ele se torna sagrado.
Ele atinge «suññatā», a vacuidade do que é efémero e ilusório, portanto, a plenitude para a alma imortal, a completude da mente iluminada, o pleroma, como lhe chamavam os gnósticos. Libertou-se por completo da origem da dor, de «taṇhā», da sede dos desejos, através da plena vida interior; do seu centro de Luz irradiante, assim se desliga de taṇhā, da actividade externa na busca da realização de desejos do efémero.
Diz-se que muitos destes Arahats, verdadeiros mahatmas, renunciam ao Nirvana como o próprio Siddhārtha Gautama, e que se tornam supremos Seres de Compaixão pela Humanidade. É o acto supremo de Luz por essa grande Unidade a que hoje chamamos de Humanidade.
Todos somos UM.
A vivência clara desta realidade deverá ser um dos mistérios do Arahat. A sua consciência já não se identifica somente com a sua personalidade efémera, já participa conscientemente de uma mente universal. Encontrou a sua identidade profunda, a sua centelha divina, essa faísca de fogo, que é como o fogo universal, tal como a gota é da mesma natureza que todo o mar.
Esse será um dos grandes mistérios do Arahat.
É bem interessante a experiência metafísica que Jorge Luís Borges partilhou numa entrevista a Christian Wildner:
«Senti, duas vezes na minha vida, o facto de viver fora do tempo. Ocorreu-me uma vez em Palermo, e outra numa das pontes por trás da estação da Constituição. Nessas duas vezes, tinham-me sucedido coisas, bem, que me tinham impactado emocionalmente durante o próprio dia. Não sei… uma mulher tinha-me abandonado… e, de repente, estava pensando nisso, quando, num instante, me vi assim, na terceira pessoa, e senti: “que pode importar-me o que acontece com Borges, eu sou Outra coisa; o que me aconteceu é meramente circunstancial.” Agora, não sei quanto “tempo” durou este estado, mas senti-me, não sei se feliz, mas como… bem, como sereno, arrebatado de tudo.»[2]
Cada um de nós, na sua verdadeira identidade, é mais do que o papel que representa no mundo. É claro que esse papel que Algo nos mandatou a realizar terá o seu sentido. Esse conjunto de experiências a superar até chegarmos ao estado de consciência de Arahat. E nesse estado de consciência plenamente activo, intenso e iluminado, a união mística da consciência com o Eu-Universal deverá ser a grande Realidade que transforma o Ser Humano num Sol da Humanidade, numa Flor Humana, num Lótus Realizado.
A sabedoria significa permanecer no centro, estar firme e livre em Dharana, a consciência permanece no centro da esfera, mas esta mantém o seu movimento intenso, assim, convirá não esquecermos que a tranquilidade do Arahat é uma tranquilidade justa no centro mas de actividade intensa sem dispersão. O Arahat está assim no patamar oposto ao falso guru, estático, tamásico, que se baseia nas formas para mostrar a sua pseudo-sabedoria, criando cenários que são reflexos da sua própria ignorância, atraindo os incrédulos do exótico e da via externa.
Também, assim, o Arahat nunca poderá ser um cobarde, já que ele próprio é mestre de heróis. Recordemos a tradição do islão interno onde al-Khiḍr, o misterioso «Sábio Verde» que conduz Alexandre Magno à fonte de vida. Também no Egipto encontramos o modelo do faraó como um semi-deus, aquele que com eles convive e é por eles iniciado, mas no seu desempenho tem de manter um «coração firme», ou seja, um coração valente, tal como Ramsés II na Batalha de Kadesh, que sozinho enfrentou destemidamente os adversários hititas.
E não olvidemos que antes de sair de Kapilavastu, o próprio Tathāgata era um valente kshatriya, pertencente assim à casta dos guerreiros e tendo liderado com êxito os exércitos do seu pai, soberano do reino.
Assim, a acção e o movimento a partir do interior, o exercício da coragem e da bravura, são portais absolutamente necessários para que todos cheguemos ao topo da montanha, onde os Arahats da Compaixão nos esperam, irradiando o seu supremo Amor por todos os humanos.
[1] Indra, divindade principal da casta dos guerreiros no hinduísmo, dos kshatriyas, tal como Zeus, portava o raio.
[2] Entrevista realizada por Christian Wildner a Jorge Luis Borges publicada no prólogo à tradução por ele próprio realizada de: Emanuel Swedenborg, El Cielo y sus Maravillas y el Infierno, Buenos Aires, Editorial Kier, 1991.