Mindfulness, uso e abuso

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Qual é a diferença entre ser simplesmente bom e parecer socialmente um cavalheiro ou uma dama?

Uma simples pesquisa na Internet sobre o significado de Mindfulness retorna um resultado de 1.430.000.000 páginas. Não há discussão, é um assunto da moda. Cursos, seminários, livros, artigos, palestras, tudo está cheio de Mindfulness.

Como aconteceu na Califórnia do século XIX, os garimpeiros aguçam o seu olfato, farejam o horizonte, encontram a palavra mágica e organizam cursos de fim de semana de Mindfulness. O sucesso é garantido, porque a grande maioria das pessoas:

a) constatam o estado de desamparo psicológico em que se encontram, a ansiedade com que vivem, a falta de objetivos claros, e também…

b) querem soluções fáceis, algo que pode ser aprendido num curso de fim de semana ou num livro que traga uma rápida mudança nas suas vidas.

O pior é que sob esse nome se esconde algo muito importante, algo muito sério, uma solução real para os problemas e enigmas do ser humano. Mas tudo isso está enterrado no lixo do consumismo rápido, de “Aprenda inglês em 7 dias”, e do “Método para perder 20 kg de peso em duas semanas”.

Aqueles que entendem, dizem que “por coincidência”, toda vez na história que uma fonte de sabedoria foi aberta, um impulso civilizador, imediatamente a sua sombra negra, o irmão negro, apareceu por trás dela, a fim de desfazer toda a esperança de redenção para a humanidade sofredora.

As escolas de filosofia da antiguidade clássica, quase imediatamente se viram imersas na lama das chamadas escolas sofísticas, daquelas que ensinavam como enganar melhor e sair vencedor em qualquer discussão, ou seja, ficar bem, independentemente de ser verdade ou mentira.

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Os movimentos de inquietação religiosa, filosófica e mística em torno do século I, logo se viram abafados pelo dogma cristão, único aliado ao poder dos imperadores.

Os ideais cavalheirescos da Idade Média, fonte de nobre inspiração na Idade das Trevas, logo foram apropriados pelas ordens religiosas, que colaboraram com as perseguições religiosas que terminaram em fogueiras.

Assim, da mesma forma, os ideais budistas de libertação do ser humano através de um trabalho lento e seguro de despertar progressivo, através de muitas encarnações, reconhecendo a realidade do sofrimento a que estamos submetidos neste mundo (As 4 Nobres Verdades) e apontando o caminho para alcançar a libertação (O Nobre Caminho Óctuplo) foram agora reduzidos a um manual de instruções básicas para chegar ao Nirvana, alguns exercícios de respiração e suposta concentração. Ninguém poderia ter inventado um plano melhor para acabar com qualquer desejo sincero de seguir o caminho do Buda.

Já existem indicações hoje, de autores sérios dedicados ao estudo da psicologia, que comprovam que os chamados exercícios e cursos de Mindfulness podem causar estados reativos de ansiedade e depressão em muitas pessoas.

Porquê? Porque a Atenção Plena (Mindfulness), atenção progressiva, é um “exercício de vida”, um método filosófico de libertação pessoal, embutido num conjunto de tradições, exegese, exercícios, etc., que não podem ser separados do conjunto moral e psicológico que os abriga e protege.

É como se, inspirados pelo cristianismo, instituíssemos alguns cursos de “Paixão na Cruz”. Concentrando-se na dor da cruz, em suplicar perante o Pai Celestial, e repetindo as palavras “Senhor, por que me abandonaste”, pelo menos sete vezes por dia, apertando as mãos e olhando para o céu.

Não seria ridículo algo assim, se acreditássemos que praticando exatamente isso todos os dias, sem consideração a toda a moral e ensinamento cristão, a toda visão cosmogónica e teogónica do Cristianismo, estaríamos seguros e nos sentiríamos melhor?

Um antigo ensinamento transmitido por H. P. Blavatsky, dizia que todo o símbolo, todo diagrama, toda ideia separada do contexto do Todo, de suas Conexões Superiores, facilmente se tornava magia negra.

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E por “magia negra”, não é preciso entender alguém com um chapéu cônico recitando palavras em línguas estranhas e desenhando círculos mágicos. Não. Este é um erro comum.

A magia é a Magna Ciência, a capacidade de pôr em movimento muitas forças em uníssono, como o bem, a justiça, a bondade, a beleza… essa é a verdadeira magia. Ou seja, o extraordinário poder que o ser humano contém e que CONECTADO E INSPIRADO PELO TODO ESPIRITUAL, trabalha para o CONJUNTO DE SERES HUMANOS, ou seja, a totalidade humana, transformando-a.

Enquanto, pelo contrário, a “magia negra” é usar o conhecimento para o seu próprio benefício, ou para fins materialistas.

A prática de “técnicas” desconectadas de seu ambiente espiritual e humanista leva ao fracasso, ou ao desejo de domínio sobre os outros. Assim, a psicologia ou estudo da alma humana, torna-se “psicologia aplicada” para controlar o mercado e as massas de pessoas de acordo com a conveniência de quem governa. Muitos outros exemplos poderiam ser mencionados.

Portanto, o Mindfulness é bem-vindo, se faz parte do contexto da tradição milenar do budismo universal, bem-vinda é a prática da Atenção Plena. A sua aplicação é um caminho seguro de libertação, e o primeiro passo no Nobre Caminho Óctuplo, mas para chegar a este caminho, primeiro tenho de saber profundamente o que é o Sofrimento, quais são as Causas do Sofrimento e o Caminho que leva à Extinção do Sofrimento.

Acredito que esta é uma tarefa de uma vida inteira, e até mesmo de muitas vidas. O Buda aconselhou que embora o objetivo fosse a libertação final, entretanto, até que isso chegasse, tínhamos de conseguir ter uma vida saudável, honesta, cheia de bondade e compaixão pelos outros, e que desta forma, quando encarnarmos novamente, teríamos uma vida mais plena, com menos sofrimento, e mais perto da Libertação Final ou Nirvana que todos buscam.

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