Joias do Panchatantra : Conto III

Em certo lugar viviam quatro brâmanes, filhos de família, que tinham uns pelos outros uma grande amizade. Todos eles afligidos pela pobreza. Aconselharam-se uns com os outros, dizendo:
1 Himalais. Pixabay

– Ah! Que horror é a pobreza! Pois muito bem se disse:

23. Mais vale viver num bosque cheio de tigres, de elefantes e de outras feras, sem água e coberto de abundantes espinhos, dormindo no chão e vestindo cascas de árvores, do que arrastar uma vida miserável no meio da família.

24. Ao homem que não tem dinheiro, odeia-o o rei, ainda que o sirva com diligência, desprezam-no os seus melhores parentes, eclipsam-se-lhe todas as boas qualidades que tenha, caem sobre ele as desgraças, não o quer a mulher, mesmo que seja de família honrada, e não o ajudam os amigos, ainda que se tenha feito credor da sua ajuda.

25. Pode ser bravo, formoso, distinto, eloquente e conhecer perfeitamente as ciências e o manejo das armas; se um homem não tem dinheiro, não adquirirá glória nem honra neste mundo.

26. Os órgãos dos sentidos estão cabais; isso são nomes. O entendimento discorre perfeitamente; isso são palavras. O homem que fica sem dinheiro, converte-se no mesmo instante num animal de carga; isso é surpreendente.

Vamos, pois, para qualquer lugar onde nos façamos ricos.

Assim resolvidos, abandonaram o país e a cidade onde tinham amigos, casa e família, e partiram. Pois bem se disse isto:

27. Deixa o seu verdadeiro amigo. Separa-se da família, abandona prontamente a sua própria mãe e, saindo da pátria, vai para terra estranha, vive entre gente que não estima, o homem que neste mundo só pensa em tornar-se rico.

Caminhando juntos, chegaram à cidade de Avanti; aí tomaram um banho nas águas do Sipra, fazendo as honras a Mahakala e, quando saíram da água, encontraram um yogui chamado Bhairavananda. Cumprimentaram-no, segundo a maneira própria dos brâmanes, e foram com ele para o seu convento. O yogui perguntou-lhes de onde vinham, para onde iam e com que objetivo, e eles reponderam:

– Vamos em peregrinação, em busca de um poder mágico: e continuaremos até que encontremos a riqueza ou a morte. Tal é a nossa resolução, pois disse-se:

28. Muitos desejos e riquezas difíceis de alcançar, obtêm os homens varonis e esforçados que sabem aproveitar a ocasião propícia.

Assim pois:

29. A água cai por vezes da nuvem num lago, mas também se escapa por um buraco. O destino é incompreensível; mas o acto humano, não será também poderoso?

30. O homem que põe em ação toda a sua energia, obtém êxito em todos os seus projetos; isso a que chamam destino é uma qualidade do homem denominada o invisível (1)!

31. O medo sem igual que se tem aos poderosos, estimam-no os homens esforçados como uma palha, tal como à vida; este proceder é extraordinário, mas é o proceder dos grandes. 

32. Sem dar o corpo à fadiga, não se obtém no mundo, dita nem felicidades; o destruidor de Madhu estreita Lakxmi com os seus braços fatigados pelo bater do mar (2).

33. Como não há-de ser inconstante a esposa de Visnu, embora ele seja tão varonil, se a deixa durante os quatro meses seguidos que passa no Oceano a dormir (cobra e serpente)?

34. A superioridade é difícil de alcançar enquanto o homem não faça acto de valor. Quando o Sol sobe até à Libra, vence montões de nuvens.

Homem Hindu. Pixabay

Indica-nos, pois, algum meio de nos fazermos ricos, seja entrar numa caverna, matar um demónio fêmea, residir num cemitério, vender carne humana, possuir uma varinha mágica ou qualquer outra coisa; pois tu, segundo se diz, tens um poder extraordinário, e nós temos valor para tudo. E disse-se:

35. Só os grandes são capazes de levar a cabo os projetos dos grandes. Excepto o Oceano, quem é capaz de aguentar o fogo submarino?

Bhairavananda fez então quatro varinhas mágicas de extraordinário poder, e deu uma a cada um, dizendo:

– Vão para a região do Himalaia. Uma vez chegados, onde lhes cair uma varinha, aí encontrarão certamente um tesouro. Cavem nesse lugar, recolham o tesouro e regressem. Os quatro brâmanes partiram, e enquanto caminhavam, caiu a varinha da mão do que ia à frente.  Começaram a cavar, encontraram a terra toda feita de cobre, e o que deixara cair a varinha disse:

– Apanhem todo o cobre que desejarem.

Os outros, no entanto, responderam:

– Néscio! E que faremos com o cobre, se ainda que tenhamos abundância, não se alterará a nossa pobreza? Levanta-te, pois, e sigamos em frente.

– Vão vocês – disse o primeiro – Eu já não passo daqui.

E este brâmane, recolhendo todo o cobre que quis, regressou a casa. Os outros três seguiram o seu caminho. Quando tinham avançado um pouco mais, o que ia à frente deixou cair a sua varinha.  Cavaram nesse lugar, e encontraram terra feita de prata. Então, cheio de alegria, o que tinha deixado cair a varinha disse:

– Apanhem toda a prata que quiserem; não vão mais longe.

Os outros dois, porém, responderam:

– Oh! Ali atrás a terra é de cobre, e aqui é de prata. Certamente, pois, mais adiante será de ouro. Além disso, ainda que tenhas prata em abundância, não desaparecerá a tua pobreza; por isso nós os dois continuaremos.

E dito isto, foram mais longe. O outro apanhou toda a prata que pôde e voltou a casa. Enquanto os últimos dois avançavam, caiu a varinha do que ia à frente. Muito contente, começou a cavar, e ao ver que a terra era de ouro, disse ao outro:

– Toma todo o ouro que quiseres, pois não haverá coisa que valha mais do que ele.

– Que néscio és! – respondeu o quarto brâmane – Não vês que primeiro encontrámos cobre, depois prata e aqui ouro? Certamente, pois, mais adiante haverá pedras preciosas, com uma das quais deixa um homem de ser pobre. Levanta-te, pois, e sigamos em frente.  Para que queres o ouro, ainda que seja em abundância, se é um peso?

– Vai tu – disse o outro – Eu ficarei aqui à tua espera.

Tesouro. Pixabay

Combinadas as coisas assim, o último brâmane seguiu em frente, mas, desviando-se do caminho que devia seguir, começou a deambular ao acaso. Indo à aventura, viu num ponto elevado um homem com o corpo coberto de sangue, e que tinha uma roda que lhe dava voltas sobre a cabeça. Aproximou-se dele, e sorrindo, perguntou:

-Eh! Quem és tu? Porque estás aqui com essa roda a girar-te sobre a cabeça? Diz-me se há água aqui por perto.

Enquanto o brâmane falava, a roda passou num instante da cabeça do homem para a dele.

– Amigo, o que é isto? Perguntou ele, espantado.

– Tal como sobre a tua, assim caiu essa roda sobre a minha cabeça – respondeu o outro.

– Diz-me, então, quando se irá embora, pois causa-me uma grande dor.

– Quando chegar outro como tu chegaste, com uma varinha na mão, e te falar, então a roda cairá sobre a cabeça dele.

– E quanto tempo havia que estavas aqui? – inquiriu o brâmane

– Quem reina agora na terra?

– O rei Vnavatsa – respondeu o brâmane

– Pois não saberia dizer-te quanto tempo aqui estive. Reinava Rama, quando eu, afligido pela pobreza, vim por esse caminho com uma varinha mágica. Vi um homem com a roda que lhe girava sobre a cabeça. E no momento em que lhe fiz uma pergunta, aconteceu-me isso.

– Como, durante o tempo que estiveste aqui, arranjaste comida e bebida? – quis saber o brâmane

– Por sortilégio do deus da riqueza, receoso de que lhe roubem os seus tesouros, ao homem que chega até aqui e fica nesta situação, passa-lhe a fome, a sede e o sono, e fica isento da velhice e da morte. Só sente a dor que lhe causa a roda. Com tua licença, pois. Vou para casa, já que estou livre.

E, dito isto, o homem foi-se embora.

Entretanto, o que tinha encontrado o ouro, vendo que o amigo não voltava, resolveu ir procurá-lo. Tendo-se internado num bosque, viu-o sentado numa pedra, com o corpo coberto de sangue e gritando devido à dor que lhe causava a roda que lhe girava na cabeça. Aproximou-se, e, com lágrimas nos olhos, perguntou-lhe:

– Amigo, o que é isto?

– Influência do destino – respondeu o outro.

– Mas, como te aconteceu semelhante coisa?

Então o outro contou-lhe toda a história da roda. O do ouro, depois de o ter ouvido, disse-lhe repreendo-o:

– Oh! Eu bem te avisei, mas não fizeste caso das minhas palavras. Que fazemos agora? Ainda que sejas sábio e de boa família, careces de discrição, e bem se disse:

36. Mais vale a discrição do que a ciência; a discrição é superior à ciência. Os que não a têm, perecem como perecem os fazedores de um leão.

O que tinha a roda na cabeça perguntou:

– Como foi isso?

O outro contou:

Notas:

  1. Esta qualidade, mérito ou demérito, depende dos atos praticados na vida anterior
  2. Alusão ao nascimento desta deusa, saída da rebentação das ondas

Deixe um comentário