Irmãos: Hoje vamos tratar dos Jivatmas que é, no nosso estudo, o assunto subsequente aos já tratados. Porque primeiro procurámos compreender, ainda que superficialmente, a importante verdade de que “Brahman é Tudo”. Depois tentámos analisar aquilo que é obscuro por excesso de luz, por assim dizer, a emanação do Um, do Ser primário, do Eu Universal, do Saguna Brahman, do próprio Ishvara. Tentamos seguir passo a passo a manifestação posterior a Ele ou, para usar as palavras do Upanishad: “Quando Ele se manifesta, tudo se manifesta através Dele.” Vimos que entre estas manifestações estavam os grandes Ishvaras dos tempos, dos sistemas siderais, dos universos. Agora chegámos ao ponto do nosso estudo em que, depois de vistas estas primeiras etapas, vale a pena perguntar: E quem são os habitantes de todos estes mundos? Como a vida central se divide entre o múltiplo? O que significa a palavra Jivatma, o ser vivo, o ser que é vida? E qual a diferença entre Jivatma e o próprio Ishvara? Estes são os problemas que trataremos de resolver; e quando conhecermos a natureza do Jivatma, a que já aludimos ao dizer que Ishvara se torna múltiplo por sua própria vontade, focar-nos-emos por alguns momentos na natureza do homem como homem. Devemos tentar compreender a nossa própria natureza e, uma vez compreendida, podemos ver o caminho, se for adequado chamá-lo assim, que leva à realização do Eu.
Estes são, em linhas gerais, os detalhes que trataremos hoje; e na próxima conferência estudaremos com mais pormenor esse caminho, ao estudar a roda dos nascimentos e mortes, vendo ao mesmo tempo que o nascimento e a morte dizem respeito por si mesmos ao que está por nascer e é imperecível. Que relação pode o nascimento e a morte ter com aquilo que por si mesmo é eterno e que participa da eternidade do próprio Deus? O que viermos a saber sobre isso dar-nos-á um novo ânimo para trilhar o caminho da peregrinação, iluminando-o com uma nova luz as dificuldades de compreensão e dando-nos a coragem para superar os obstáculos que se nos atravessem. Contemplando o sistema planetário, ou mais estritamente o mundo que habitamos, observamos em nosso redor criaturas vivas de todos os tipos e outras que um grande número de pessoas não as considera como tais. Mas para nós não existe diferença entre as criaturas vivas e as chamadas não vivas, exceto no grau de vida que se manifesta nelas. Não há diferença fundamental, não há separação. Se eu pego um grão de areia, é para mim um Jivatma escondido sob um denso véu de matéria; e se pudéssemos ver entre nós o alto Deva que governa o mundo, ele também seria para nós um Jivatma, embora com um véu mais transparente, de matéria menos densa. A luz, que é a mesma no Deva e no grão de areia, brilha em um e obscurece-se no outro. Vejamos agora se esta afirmação é de alguma forma exagerada ou absurda. Para isso, devemos recorrer aos livros que nos guiam no nosso estudo; e para nos convencermos de que todas as coisas têm um Jivatma nos seus corações, detenhamo-nos por um momento em alguns princípios capitais, porque se os compreendermos claramente será apenas uma questão de os aplicar a casos particulares, embora esta aplicação não a possamos encontrar nas Upanishads. Estes dão-nos os princípios gerais, mas não a sua aplicação. Contudo um dos princípios é que tudo se manifesta por tríades, por três. Isto é natural, porque no princípio de tudo, a manifestação primária mostra a tríplice natureza do que se manifesta, expressa com as três letras da sílaba AUM.
Portanto o que emana também será de natureza trina, de reflexo em reflexo e, uma vez que o objeto refletido é trino, a imagem deve por sua vez ser trina. Este é um dos princípios que, como veremos, está claramente exposto na Chandogyopanishad, onde se lê que nas etapas primitivas foram emanados três grandes elementos (que podemos chamar de Devatas): o fogo, a água e a terra.
Estes três elementos emanados de Ishvara, difundiram-se por todos os mundos e Ele disse: “Infuso nestes três Devatas como Jivatma, Eu manifestar-me-ei em nome e forma”. Tais palavras requerem a nossa especial atenção: “manifestar-me-ei em nome e forma”. Infuso assim nos três Elementos, cada um deles chega a ser uma trindade. O fogo chega a ser trino pela Sua infusão; a água chega a ser trina pela Sua infusão; a terra chega a ser trina pela Sua infusão. Assim os três Elementos multiplicam-se em nove e, progressivamente, cada trindade reproduz a sua natureza noutras três trindades, povoando o universo com essas trindades ou tríades onde que cada uma é o reflexo da vida da qual emana. Por isso Ele disse: “manifestar-me-ei como Jivatma, em nome e forma”. Estas palavras definem Jivatma que, segundo elas, é Ishvara com nome e forma. Esta definição é tirada da própria Upanishad. Jivatma nada mais é do que Ishvara com nome e forma (individualizado, particularizado, como diríamos). É a coisa da mais vasta essência, limitada por nome e forma que implica a presença de matéria, porque de acordo com o Vishnu Purana, matéria é “extensão”. Por isto, a forma implica matéria, veículo, upadhi, corpo, como a quiserem chamar. O nome significa aquele tom particular emitido por cada agregado ou combinação de matéria, que constitui o verdadeiro nome de cada ser vivo. Cada um de nós tem o seu próprio nome pessoal, mas estes não são os nossos verdadeiros nomes, porque eles mudam a cada nascimento. Numa vida podes chamar-te Guilherme, noutra Kalicharan; numa encarnação ser um homem com nome masculino e noutra ser uma mulher com nome feminino. Por isso se escreveu acerca do Jivatma: “Não é homem nem mulher nem hermafrodita”. Supera todas as distinções de sexo. Assim, nenhum desses nomes mutáveis pode ser o nome pelo qual o Ishvara se iguala a Jivatma.
Qual é então o nome? Cada agregação de matéria, de átomos, emite através das suas vibrações um som resultante de todas elas, de acordo com a natureza material da combinação. Este som é o nome do objeto. O som emitido pela combinação material e o som da luz de Jivatma, que arde no seu seio e é também som, eles harmonizam-se numa nota vibrante que expressa perfeitamente a natureza individual e só esta nota é o nome verdadeiro. Este é o nome de cada um de nós e cada um de nós tem um nome que agora soa dissonante porque com ele se misturam todos os tipos de sons desarmónicos que perturbam a vibração clara da nota. No entanto, ele está aí e a realização do nome é a realização do Eu. Desta forma, os nossos Jivatmas são Ishvara com nome e com forma. Seguindo o nosso caminho, reiteramos a afirmação que, com distintas palavras, tomámos ontem de outras Upanishads, mas que vem muito a propósito para explicar a natureza do Jivatma. “Este é Brahman, este é Indra, este é Prajapati, este é todos os Devas e os cinco grandes elementos, terra, ar, éter, água e fogo; o nascido do ovo, o nascido do ventre, o nascido da gema, os cavalos, as vacas, os homens, os elefantes, tudo o que respira, que caminha, que voa e o imóvel”. Também lemos na Brhadaranyakopanishad: “Aquele Imortal está oculto na existência”. Estranha frase! Dizemos que o Imortal se manifesta na existência; mas agora, com uma visão mais profunda, dizemos que o Imortal está oculto na existência. A existência é uma parte de Maya e limita aquilo que por si mesmo é ilimitado. Daqui que o Imortal esteja oculto à nossa própria vista pelo simples facto da nossa existência separada. “A vida é, na verdade, Imortal; o nome e a forma são a existência na qual está oculta a vida”. Essa é a grande verdade do Jivatma. E a propósito, tenho que lembrar o que foi dito na conferência anterior, porque é o nosso ponto de vista atual.
Refiro-me às seguintes palavras da Chandogyopanishad “Este Brahman, é de facto o éter que está fora do homem e, em boa verdade, é o éter que está dentro do homem.” Assim é o Jivatma. Não pode haver dúvida nos ensinamentos das Upanishads sobre este ponto crucial; e chamo a atenção de diferentes maneiras, é porque ele constitui o eixo do ensinamento, o eixo sobre o qual gravita todo o conceito da vida. Enquanto não se convencerem disso estareis cegos e sereis escravos. Logo que percebam, tudo mais virá em consequência, porque é tão verdadeiro em nós quanto é no mundo: “Quando o Ser se manifesta, tudo se manifesta através dele.” Não importa que estejais perturbados, que estejais cegos, que os vossos uphadis os aprisionem; nada disso importa desde que reconheçam a grande verdade da vossa própria divindade, porque assim como o sol arde acima das nuvens que obscurecem o esplendor de sua luz, assim a glória do Eu, resplandece no coração, cintila sobre o que o eclipsa, até que acaba por brilhar sem véus. Qual é a diferença entre Ishvara e Jivatma que as palavras “nome” e “forma” implicam? Lemos em Shvetáshvataropanishad: “Conhecimento e não conhecimento, ambos por nascer, potente e impotente… ligados pela condição de um desfrutador”.
Preso a objetos, esta é a diferença e nenhuma outra. Quebrem-se os laços que o prendem os seus corpos, ele fica livre. Mas dentro da escravidão dos seus corpos, ele é sempre livre, porque a liberdade é essencial à sua natureza e não está ligado pelas ataduras que o rodeiam. Os corpos estão ligados; não o Eu. O Jivatma é sempre livre. Uma questão surge aqui: Qual o motivo de tudo isto? Porque, sendo o Jivatma da natureza do Ishvara, omnisciente e omnipotente, por meio de que estranho mistério se tornou fraco e ignorante? Porquê? Para quê? Se perdermos a liberdade, por que motivo a perdemos? Que a perdemos é evidente, porque neste mundo estamos amarrados. E a menos que a pergunta seja respondida, ficaremos sempre mais ou menos confusos, porque à primeira vista o procedimento parece confuso. Se fomos livres noutra época e noutro estado, porque desaparecemos deliberadamente no oceano de Maya, perdendo a liberdade que é a nossa propriedade, e a sabedoria, que é a verdadeira natureza do Ser. Porque fizemos isso? Que o fizemos é evidente, pois aqui chegamos, mas porquê? A resposta é tão clara quanto o facto. Fizemos isso porque no mundo dos deuses superiores, no mundo onde o conhecimento é perfeito e o poder omnipotente, a matéria é muito ténue, é a mais subtil limitação da forma, tão extremadamente subtil, que todas as formas se misturam e não é possível distinguirem-se umas das outras. Usando uma discrição antiga que os gregos deram a este estado, o sol e as estrelas são cada uma as outras e elas mesmas ao mesmo tempo.
O conhecimento, embora amplo, carece de uma precisão definida, a qual apenas se pode alcançar por limitação. Este é outro princípio capital. À medida que nos limitamos, definimos. À medida que definimos, ficam mais claro todos os contornos. E, portanto, embora Jivatrna seja omnisciente e omnipotente em elevadas regiões, torna-se cego, indefeso e escravo de Maya na densa matéria com que o Ishvara formou o universo; e manifesta-se para fazer o que Ishvara fez antes dele, isto é, para voltar a ser o dono e não o escravo de Maya; então, em parte alguma, pois tudo é Brahman, pode haver algo que o limite, algo que o cegue. Por nossa própria vontade, chegaremos a exercer os nossos poderes. Mas quando tratamos de exercê-los neste grande oceano de matéria densa, vemo-nos impotentes. A matéria é demasiado obcecante, demasiado opaca, demasiado rígida; não a podemos moderar ou regular e, voluntariamente, por algum tempo, fazemo-nos seus escravos para chegar a dominá-la. Sabendo isto, não queremos ficar apenas na região onde éramos livres, mas ansiamos por ser em todas as partes e não apenas naquelas esferas superiores. Ansiamos por viver, agir e conhecer em todas as condições possíveis da matéria e não estritamente na subtilíssima forma peculiar à região que era o nosso berço e a nossa verdadeira pátria. Próprio da natureza da vida é a ânsia de viver e exercitar faculdades.
Como podemos consegui-lo? Somos parte de Ishvara e participamos da transbordante energia da Sua vontade. Prazeroso é chegar-se a ser múltiplo; prazeroso é difundir por onde se queira o poder e a vida, prazeroso é criar e infundir a nossa vida nas formas que criamos; e como partes Dele, queremos o que Ele quer e com Ele mergulhamos no oceano da matéria onde podemos reconquistar a nossa liberdade e ser como Ele é, sempre livres. Somos partes de Ele, limitado pela forma e nome, e a parte não tem ao princípio as possibilidades, ou melhor, as atualidades do todo. Sim, tem as possibilidades, porque somos partes, mas não a expressão delas, também porque somos partes. Para que as partes cheguem a ser o todo, subtemo-nos à temporal limitação para que nela possamos vencer e ser livres. Daqui esta escravidão. Na nossa limitada condição podemos maravilhar-nos por termos vindo a este mundo; mas ninguém nos obriga a entrar neste universo. Viemos voluntariamente com Ishvara que quis manifestar-se. E porque Ele quis manifestar-se, nós também o quisemos, pois somos parte Dele. Como parte Dele devemos conquistar a nossa liberdade para que, mesmo no mundo da matéria mais rude, sejamos omnipotentes e sábios, como o somos nas elevadas regiões do nosso nascimento, onde reconhecemos a nossa divindade e a nossa ligação a Ishvara. Na Aitareyopanishad, que é muito breve, mas muito valiosa, há uma descrição interessantíssima do modo como sucedem as etapas desta manifestação dos Jivatmas. “No início, este era verdadeiramente o único Ser e nenhum outro vivia. Ele disse: “Emanemos mundos”.
Ele começou então a emaná-los. Primeiro emanou os Elementos, depois os Devas. Vamos olhar para este ponto por um momento. Quem são estes Devas? Os Elementos; aqueles seres poderosos de universos passados que têm por corpos o que as antigas escrituras chamaram de Elementos. Como temos os nossos corpos físicos, eles têm também os seus corpos materiais e o corpo do Deva é da matéria de um plano, como teosoficamente se diz. Um plano está formado por uma classe de matéria, por um Elemento. No entanto, não se confundam estes Elementos com os corpos simples da química, pois a vossa confusão seria maior. Um Elemento, no significado primitivo da palavra, significa matéria cujos átomos têm uma certa forma. Existem sete formas de átomos, das quais cinco estão manifestadas. Estas cinco formas ou classes de átomos são os cinco elementos e de cada um deles, ou átomos elementares, existem uma infinidade de combinações que, em conjunto, constituem um plano. Assim, um elemento, por exemplo o Fogo, está em toda a matéria formada por átomos ígneos; e na combinação de cada coisa, por mais complexa que seja, podem entrar vários átomos. Estes átomos ígneos integram o corpo do Deva do fogo, Agni, que encarnou em dito corpo formado de átomos ígneos fazendo-o seu veículo de manifestação. Fixem bem esta ideia. Cada Elemento é o corpo de um Deva e toda a matéria composta por dito Elemento pertence ao corpo do Deva que está em toda ela. Da mesma maneira que o nosso Jivatma vive no nosso corpo e nele se move e nele está consciente, Agni vive, move-se e é consciente em todas as combinações dos átomos Ígneos. Isto é o que significa o Deva de um Elemento. Agni está em todas as coisas dos três mundos onde entra o fogo. Nas primeiras etapas da construção do universo, havia Elementos dos quais a mente de Ishvara produziu certas formas que ofereceu aos Devas para que nelas vivessem, mas os Devas rejeitaram-nas, dizendo: “Não viveremos nestas”.
Então Ishvara produziu novas formas que também os Devas rejeitaram, dizendo: “Não viveremos nestas”. Eles queriam ceder-lhes a sua substância mas não identificar-se com elas. Então Ishvara produziu o Purusha, o homem arquetípico, e os Devas exclamaram: “Muito bem feito! Nele entraremos e nele moraremos”. Portanto, o homem é a maior criatura e na última construção de mundos, os animais são partes rejeitadas dele. O que ele desejou teve utilização na formação do reino animal.
E se às vezes nos queixamos da classe de animais que nos rodeiam, se os virmos como obstáculos, impedimentos e desconforto, vamos concordar que existem porque o homem pensa e obra de forma sinistra. Estes animais que nos rodeiam são resultado do nosso passado que nos atormenta no presente. Estes Jivatmas vivem nos corpos que construímos para eles com os nossos desejos; e lembremo-nos de que apenas realçando-o poderemos purificar o reino animal e conduzi-lo connosco, porque é nossa criação, como nós somos a criação de seres superiores. Os Devas infundiram-se no homem dando-lhe algo da sua própria substância para lhes formar os sentidos. O fogo chegou a ser palavra na sua boca; o ar foi alento no seu nariz, e assim os demais sentidos, que têm todos os seus órgãos no corpo com os poderes e faculdades do Deva residente neles. Então, o Jivatma, para quem este templo se tinha erguido (porque o corpo humano é o Brahmapura, o Vishnupura, a cidade divina de Brahman, a mansão de Deus), disse: “Entremos nele”; e entrou na cabeça, por onde se separaram os cabelos, chegando a ser o morador do corpo, o encarnado Eu. “Este corpo é morada do imortal e incorpóreo Ser”. O Jivatma entrou nele tomando três lugares. A Upanishad não os menciona; diz apenas: “Um lugar de residência, outro lugar de residência e outro lugar de residência. “Quais são estes lugares? Diz-nos a Mandukyopanishad. Primeiramente, temos a consciência de vigília e o cérebro em que atua é um dos lugares de residência. Ao cérebro é-lhe dado alguma vez por símbolo o olho direito, pois o cérebro conhece por meio dos sentidos. O segundo lugar de residência é o corpo mental, a mente interna, o antahkara ou ponto da consciência sobredesperta do Ego chamada Taijasa.
O terceiro lugar de residência é a própria Mónada, o Jivatma considerado igual a Ishvara, o Jnana Deha na sua mais subtil e superior forma. Dá-se-lhe por símbolo o éter na cavidade do coração, a câmara do lotus, o antarakasha, o éter interno onde mora o Eu. Estes são os três lugares onde reside a consciência que, de tal forma, se manifesta trina: o Pranatma, segundo eu lhe chamo, ou seja, Vaishvanara; depois Taijasa, a refulgente, radiante e omnidifusa inteligência, o Aham, o Eu; por último, aquele supremo estado em que Prajna, o conhecimento, alcança a sua perfeição e o homem chega a ser o Senhor de todo o conhecimento. Estes são os três estados, as residências de Ishvara como Jivatma limitado pelo nome e pela forma. Detenhamo-nos nesta trina natureza do homem, pois dela deduziremos outro princípio importante: o princípio de reflexo. Cada manifestação projeta uma sombra, uma imperfeita reprodução de si mesma e por isso são sempre ideias correlativas às de luz e sombra. Ensinando Nachikethas acerca do eu inferior e do Eu superior, diz-lhe Yama: “Brahma e aquele que conhece a Brahma, são como a luz e a sombra”. Desejo que compreendas o significado deste princípio de reflexo, porque vos dá o fio que te guiará por muitos labirintos. As palavras luz e sombra podem aplicar-se a muitos pares de coisas; mas se compreenderes a ideia, distinguirás facilmente o seu uso particular. Onde quer que haja um par, o superior manifesta-se no inferior, sobrevem o reflexo e há luz e sombra. O símile é muito expressivo. Suponhamos que tenho aqui uma luz brilhante e que tudo quanto me rodeia é a atmosfera através da qual se difunde a luz, então não haverá sombra alguma.
Mas suponham que interponho um objeto de matéria densa entre os raios da luz, este projetará sombra com os mesmos contornos do objeto, mas não será a reprodução deste em todas as suas partes. E onde há luz e interposição de matéria densa, projeta-se a sombra. A mónada é a mais elevada forma separada mesmo que só a separe uma subtil pelicula de matéria, à maneira de véu de separação; mas este véu é permeável e nenhuma Mónada está num lugar mas estão todas em todo o lugar. A Mónada é a luz; na matéria dessa, a sua sombra é o trino Jivatma, o Atma-Buddhi-Manas, chamado por vezes o trino Atma, a espiritual individualidade do homem, o verdadeiro Aham depois de unido. O primeiro par de luz e sombra é a Mónada nos mundos devachanicos e o trino Atma no mundo dos homens.
Mas quando desce para se manifestar toscamente, surge outro par; o trino Atma é então a luz e a alma vivente, o vital alento no corpo humano, o Pranatma é a sombra. Assim em nós a sombra é Prana e a luz o trino Atma. Quando realizarmos o trino Atma e o reconhecermos pelo nosso Eu, é sombra, e a luz é o verdadeiro Jivatma, a Mónada, o amsha ou parte do mesmo Ishvara. Quando realizamos que Ishvara é o nosso Eu e em Ele nos submergimos então o Eu é a sombra e Ishvara a única luz. Por isso se escreveu: “Esta vida nasceu do Ser. Como o homem projeta sombra, assim aquela produziu este”. Que comparação tão acertada! Basta compreender a sua aplicação para que não se nos ofereça dificuldade alguma. A mesma verdade está exposta na Taittiriyopanishad ao dizer que cada inferior é o corpo do superior. Ishvara é o corpo do Nirguna Brahman; os Ishvaras inferiores são os corpos do supremo Ishvara; os Jivatmas humanos são os corpos dos Ishvaras secundários e assim sucessivamente até chegar à mais grosseira forma de matéria, ao corpo físico que é de Prana, do alento da vida. Assim se forma uma escada onde não falta nenhum degrau e podemos subir.
Não há diferença senão nos upadhis que revestem a consciência única. Disto podemos deduzir uma definição de homem dizendo que é a entidade em que se equilibram o Eu e o Não-Eu. Tal é a definição oculta do homem que não supõe forma alguma especifica nem órgãos, nem disposição de membros na cabeça, tronco e extremidades. O homem é o ser com forma apropriada para que as potências do Jivatma lutem pela sua supremacia, por forma a que Matéria e Espírito possam alcançar o predomínio. O homem é o campo de batalha do universo onde Ishvara e Maya pugnam pelo senhorio; em baixo, no campo, está Maya, onde fica Ishvara oculto; em cima do campo Ishvara é senhor e Maya está vencida; uma e outra lutam nele pela supremacia e assim o homem é o campo de batalha, o Kurushetra do universo. Todos os Jivatmas regressam da luta neste campo, todos serão ou foram homens segundo diz H.P.B.
Outra expressão muito útil e significativa, convém saber, o Jnanashakti ou poder de conhecimento. Este é o Jivátma cuja natureza é consciência ou conhecimento, a sua sombra é o Pranatma, o eu pessoal, o Kriyáshakti ou faculdade de ação. Constituem um par, a nossa luz e sombra, o eu inferior e o Eu superior. “Dois pássaros, unidos, com o mesmo nome, moram numa árvore; dos dois, um desfruta o Delicioso fruto, o outro discerne”. Quem são os pássaros? Um par, do qual o inferior é sombra do superior. Qual é a árvore? Um upadhi, veículo ou forma no qual mora o superior. Os dois pássaros estão em nós: Atma e Pranatma, e os corpos são a árvore de que Pranatma disfruta, o trino Atma discerne. Nos Rishis os dois pássaros são: a Mónada, o verdadeiro Jivarma e o trino Atma; este desfruta e a Mónada discerne. Em todos os casos o superior discerne e o inferior é instrumento mediante o qual atua o superior no mundo. No entanto, na mais elevada esfera, os dois pássaros são o Nirguna e o Saguna Brahman, o eterno Discernimento e o Gozador no espaço e no tempo. Fica agora por examinar o que é Prana e qual a sua relação com os elementos, com os Devas e com o mesmo Jivatma. Disse Indra: “Eu sou Prana… a vida é Prana. Prana é vida”. Indra é o rei dos Deuses, é o maior deles e considera-se como símbolo dos Devas operantes no universo e como símbolo também de Jivatma e de Ishvara. “Eu sou Prana”. E porquê Prana? Porque como Ishvara dá vida a todas as coisas, e a vida é o alento vital, chama-se Prana no plano físico. No entanto, no Yoga encerra-se em Prana o significado de todas as energias vitais do universo e pranayama não é, na realidade, a subjugação ao Eu do alento físico unicamente senão de todas as energias vitais.
Mas prossigamos a tratar este ponto. Na sua relação com os elementos e os Devas diz-se que o Prana é quíntuplo dividindo-se em cinco Pranas. Verdadeiramente é quíntuplo no plano físico; é como uma fonte ou manancial cuja corrente flui por diversos canais sendo a própria água. Prana recebe vários nomes do mesmo modo que as águas que correm por distintos caudais. Podemos chamar aos rios o Ganges, o Brahmaputra ou o Indo; mas todas as suas águas emanam dos Himalaias.
Assim, Prana, por dividir-se quintuplemente, recebe nomes diversos quando o vemos dividido apesar de só darmos um em conjunto; “Quando respira chama-se vida; quando fala, palavra; quando vê, vista; quando ouve, ouvido; quando pensa, mente”
Por esta razão as Upanishads chamam Devas aos sentidos, recordando-nos que a vida produz formas, mas não as formas de vida. Uma coisa com vários nomes, mas apenas um Prana em todos eles. Diz-se-nos que os sentidos unicamente estão em atividade quando Prana reside neles. Há uma bela passagem na Chandogyopanishad que resumirei brevemente para demonstrar a relação de Prana com os sentidos. Os órgãos disputam pela supremacia e cada qual exclama; “Eu sou o principal”. Para dirimir a contenda perguntam a Prajapati; “Qual de nós é o principal?”. A resposta foi “Aquele que ao partir deixe desvalido o corpo, esse é o principal. Então partiu a palavra, e o corpo viveu mesmo que mudo; depois foi-se a vista e o corpo viveu, apesar de cego, depois foi o ouvido e o corpo viveu apesar de surdo, mas ao partir a mente, o corpo viveu imbecil e idiota. Então Prana evadiu-se rapidamente de todos os órgãos dos sentidos e estes exclamaram: “Oh Senhor! Tu és o maior. Rogamos-te que não saias e no teu sítio residas”. E um atrás do outro, foram até Prana e reconheceram que apenas a Prana deviam as suas faculdades. Porque todos eles são Prana e sem Prana nenhum pode viver. Qual é a relação de Prana com Jivatma? Veremos que são simplesmente o mesmo, que o Prana que está em nós é o nosso verdadeiro Jivatma, o nosso verdadeiro Eu. Por isso chamo de Pranatma à manifestação inferior. Cada sentido foi tomado por Prana de uma faculdade do trino Atma; faculdade pertencente ao Jnanashakti, e Prana, ao adquirir esta faculdade, a transforma numa potência, a transforma em Kriyashakti.
O objeto do sentido está situado exteriormente, como elemento rudimentar que excita a atividade naquele especial sentido e o mesmo ocorre com todas as possibilidades do trino Atma. Então diz-se que Prajna, o conhecimento, chegado a cada sentido, vive e age no mundo e conhece todos os objetos. Todo o conhecimento reside no trino Atma que é verdadeiramente o Jnanashakti. Como Prana toma as faculdades referidas e a cada uma delas converte numa shakti, em potência, escreveu-se que o verdadeiro Prana é idêntico a Atma. Porque Prana é Atma com o nome de Prajna. “Prana é Prajna e Prajna é Prana”. Só há diferença na forma de manifestação. Feito isto por Prana diz-se então que o Jivatma mora no corpo: “Ó Maghavan!” Mortal é na verdade este corpo dominado pela morte; do imortal e incorpóreo Eu é residência”. Mediante Prana atua no nosso interior o trino Atma. Por isso escreveu-se que os órgãos corporais dos sentidos estão formados pela vontade do Eu em pôr-se em contacto de experiência com várias formas da matéria; o Eu deseja ver, ouvir, falar, provar, pensar e disto provém os órgaos. Tal é a ordem da evolução; o Eu não é produto do corpo, mas este é o edifício erigido pelas potências inerentes ao Eu; cada manifestação neste mundo mortal, neste mundo dominado pela morte, tem a sua causa na vontade do Eu; esta é a verdade. Nada há em nós nada que não proceda do trino Atma; nem potência nem pensamento nem órgão dos sentido que não apareça pela sua vontade, pois quer manifestar-se e quer aproveitá-la. E assim escreveu-se como antes se disse: “Do Eu nasceu esta vida”. O inevitável resultado deste estudo é proporcionar matéria para o exercício do estudante na vida diária. Evidentemente não pode encontrar o Eu o seu repouso nestes órgãos por ele criados, pois não podem já satisfazer-nos quando nos convencermos de que os formamos apenas para propósitos transitórios. É o Eu quem “vê e não vê, ouve e não ouve, pensa e não pensa, conhece e não conhece. Ninguém vê senão ele; ninguém ouve senão ele; ninguém pensa senão ele; ninguém conhece senão eles. Ele é teu Eu, o interno governador e imortal. Daqui a advertência: “que não deseje o homem conhecer o falado, senão o que fala, que não deseje o homem conhecer o olfato, senão aquele que cheira.
Não deseje o homem conhecer a vista, senão ao que vê. Não deseje o homem conhecer o som, senão a quem ouve. Não deseje o homem conhecer a mente, senão o que pensa”. O Eu “é o Dono do mundo, o Rei do mundo, o Senhor do mundo; este é o meu Eu. Assim há que conhecê-lo o homem”. Não é isto razoável? Para quê conhecer apenas os objetos se aquele que os conhece está no nosso interior? Os objetos chegam a ser insignificâncias e ninharias. O Eu, o possuidor de todos os poderes é quem verdadeiramente temos de conhecer. Neste conceito da natureza do Jivatma, da natureza do homem, fundam-se todos os sistemas do Yoga e, segundo antes se disse, o verdadeiro Pranayama forma a escada que conduz ao conhecimento do Eu. Todas estas etapas hão-de ser seguidas uma por uma; hão de ser compreendidas uma por uma, dominando-as gradualmente até alcançar o Eu no nosso interior. Este Eu é o que se deve conhecer, compreender e realizar e todas as formas devem morrer porque são perecedoras e só permanece o imortal e imperecedeiro Eu. Este é o Pranayama de que falam os verdadeiro Yoguis. “Quem diretamente reconhece este Eu como Deus, Senhor do passado e do futuro não tenta já ocultar-se”. Porque se ocultaria? Como se ocultaria? Ele é Brahman, o isento de morte e livre de temor”. Nada pode temer. Ele mesmo é tudo e quando compreenda isto não temerá ninguém e nada do exterior a ele. Pensas que tens inimigos? Pura ilusão.
Nada há senão o Eu e nada há no exterior que possa ser inimigo do Eu consciente. Acreditas que estás submetidos a provas e tribulações, que sofres injustiças e injúrias? Nada há no exterior a vós que possa infligir injúria. És o Eu; uma parte de vós luta com a outra; ambas ignoram que lutas com ela, que com as vossas próprias mãos lutas com a vossa própria cabeça. Mas a ilusão do Eu é inimiga do Eu e não sabemos em toda a parte, quem quer que seja, o Eu, nós, temos mãos, pés e olhos. Todos são nossos e não há diferença. A mão que se estende para apertar a nossa é a nossa própria mão que extingue o nosso Karma e quando esteja extinto seremos livres. Os laços que nos aprisionam são os que separam aquela mão da nossa. Por isso disse-se que não há amigos nem inimigos; há uma só vida: o Eu, o Brahman extinto de morte e livre de temor. “Brahman, o verdadeiramente Imortal; Brahman da frente, Brahman de trás, Brahman pela direita, pela esquerda, abaixo, acima omnipenetrante; Brahman que ainda a tudo isto excede”.
Exraido do livro A Sabedoria dos Upanishads. Biblioteca Upasika 2003