Como nos lembramos de vidas passadas

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Retirado do livro Como Nos Lembramos das Nossas Vidas Passadas e Outros Ensaios sobre Reencarnação, publicado em 1915 pela Theosophical Publishing House, Adyar, Índia.

Entre as muitas ideias que aliviaram o fardo do Homem, uma das mais úteis tem sido a da Reencarnação. Ela não só explica porque é que um homem nasce num berço de ouro e outro na pobreza, porque é que um é um génio e outro um idiota, mas também contém a esperança de que, tal como hoje o homem colhe aquilo que semeou no passado, também em vidas futuras, o pobre e o miserável de hoje terão aquilo que lhes falta, se trabalharem por isso, e o idiota pode, vida após vida, construir uma mentalidade que em dias futuros, poderá florescer como um génio.

Quando a ideia da reencarnação é ouvida pela primeira vez, o estudante supõe, naturalmente, que é uma doutrina Hindu, pois é conhecida como uma parte fundamental do Hinduísmo e Budismo. Mas o estranho facto é que a reencarnação é encontrada em todo o lado como uma crença, e as suas origens não podem ser atribuídas a fontes Indianas. Ouvimos falar dela na distante Austrália1, e existe uma história registada de um aborígene Australiano que foi alegremente para a forca, tendo respondido, ao ser questionado quanto à sua leviandade: “Cair homem-negro, saltar homem-branco, e ter muitos centavos para gastar!” Foi explicada pelos Druidas da Gália antiga a Júlio César como era ensinada a reencarnação aos jovens gauleses, e que, como consequência, não tinham medo da morte. Os filósofos Gregos conheciam-na; temos Pitágoras a dizer aos seus pupilos que nas suas vidas passadas ele havia sido um guerreiro no cerco de Troia, e, mais tarde, o filósofo Hermótimo de Clazómenas. Não é totalmente desconhecida dos ensinamentos Cristãos, se tomarmos a simples afirmação de Cristo, quando questionado se João Batista era Elias renascido: “Se quereis recebê-lo, este é o Elias que havia de vir”, e Ele segue a declaração com as palavras significativas: “Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça”. Na tradição judaica posterior, a ideia é conhecida, e o Talmud menciona vários casos de reencarnação.

Há muitos a quem a reencarnação atrai mais fortemente, e Schopenhauer não exagera quando diz: “Também reparei que é imediatamente óbvio para todos os que ouvem falar dela pela primeira vez”. Alguns acreditam na ideia imediatamente; chega-lhes como um raio de luz na espessa escuridão, e o problema da vida é claramente visto com a reencarnação como a solução. Outros há que crescem na crença, à medida que cada dúvida é resolvida e cada pergunta respondida.

Há uma, e apenas uma, objeção que pode ser logicamente levantada contra a reencarnação, se corretamente entendida, como a Teosofia a ensina. Reside na questão: “Se, como diz, vivi na Terra noutros corpos, porque não me lembro do passado?”

Então, se a reencarnação é um facto na Natureza, seguramente não faltarão outros factos que apontam para a sua existência. Nenhum facto na Natureza permanece isolado, e é possível descobrir esse facto de diversas maneiras. Similarmente, assim é com a reencarnação; de facto, existem factos de tipo psicológico suficientes para provar a um pensador que a reencarnação deve ser um facto da Natureza e não uma teoria.

Ao responder à pergunta porque não nos lembramos das nossas vidas passadas, certamente o primeiro ponto necessário é perguntar-nos o que entendemos por “memória”. Se tivermos algumas ideias claras sobre o mecanismo da memória, talvez possamos entender porque não (ou sim) nos “lembramos” dos nossos dias ou vidas passadas. Agora, falando brevemente, o que normalmente entendemos por memória é um resumo. Se me lembrar hoje dos incidentes de cortar o meu dedo ontem, haverão dois elementos na minha memória: primeiro, a série de eventos que levaram a produzir a dor – a desventura no manuseio da faca, o corte, o sangramento, a reação sensorial no cérebro, o gesto, e assim por diante; e, segundo, a sensação de dor. Com o passar dos dias, as causas da dor recuam para a periferia da consciência, enquanto os efeitos, como a dor, ainda mantêm o centro. Presentemente, descobriremos que até mesmo a própria memória da dor fica em segundo plano, deixando para trás connosco não uma memória direta, como um evento, mas uma memória indireta como uma tendência – uma tendência para ser cuidadoso no manuseio de todos os utensílios cortantes. Este processo ocorre continuamente; a causa é esquecida (embora recuperável da mente subconsciente sob hipnose), enquanto o efeito, transmutado em tendência, permanece.

É aqui que somos especialmente auxiliados pelo cérebro. Temos a tendência de pensar no cérebro como um registador de memória, sem perceber que uma das suas funções mais úteis é apagar memórias. O cérebro desempenha a dupla função de lembrar e esquecer. Se não fosse a nossa capacidade de esquecer, a vida seria impossível. Se cada vez que tentássemos mover um membro, nos lembrássemos de todos os nossos esforços infantis de movimento, com a hesitação, a dúvida e talvez até a dor envolvidas, a nossa consciência seria tão sobrecarregada por memórias que o movimento necessário do membro certamente seria atrasado ou não realizado de todo. Similarmente, assim é com todas as funções agora executadas automaticamente, que antes eram adquiridas conscientemente; é porque esquecemos o processo de aquisição que podemos utilizar a faculdade resultante dele.

Isto é o que está a acontecer continuamente na consciência de cada um de nós. Há um processo de troca, semelhante a moedas de cobre de uma denominação a ser trocadas por moedas de prata de menor volume que as representam, depois por moedas de ouro de menor peso ainda e, posteriormente, por notas de banco que representam o seu valor e, por último, por pedaço de papel, um cheque, cujo valor intrínseco é nulo. No entanto, temos apenas de escrever a nossa assinatura no cheque, para colocar em operação todo o meio de troca. É um processo semelhante que ocorre com todas as nossas memórias de sensações, sentimentos e pensamentos. Estes são agrupados separadamente em categorias e transmutados em gostos e aversões e, finalmente, em talentos e faculdades.

Agora sabemos que, ao manifestarmos um gosto ou aversão, ou exibimos qualquer capacidade, estamos a lembrar-nos do nosso passado, embora não nos possamos lembrar detalhadamente de cada uma das memórias que contribuíram para originar as emoções ou a faculdade. Ao escrever estas palavras em inglês nesta página, devo estar-me a lembrar da primeira vez que vi cada palavra num livro e procurei o seu significado num dicionário enquanto preparava as minhas lições em casa; mas é uma espécie de memória transmutada. No entanto, eu lembro-me, e se não fosse por essas memórias estarem em algum lugar na minha consciência (se em contato com algumas células cerebrais ou não, não é o ponto agora), eu não deveria ser capaz de pensar na palavra certa para expressar o meu pensamento, nem moldá-lo neste papel para que a impressora reconheça as letras para configurá-las na impressão. Além disso, sabemos como um facto que esquecemos estas memórias causadoras uma por uma; seria tolice se, ao escrever uma determinada palavra, tentasse evocar a memória da primeira vez que a vi. O cérebro é um instrumento de registro de tal natureza que, embora registe, não obedece à consciência quando esta deseja desenrolar o registo, exceto em certos casos anormais. O desejo de lembrar não é necessariamente seguido pela lembrança, e temos de aceitar esse fato tal como é.

Foi aqui que Bergson apontou de forma muito luminosa que “nós pensamos apenas com uma pequena parte do passado; mas é com todo o nosso passado, incluindo a inclinação original da nossa alma, que desejamos, queremos e agimos.” Claramente, então, seria inútil tentar lembrar as nossas vidas passadas pelo mero exercício da mente; embora o pensamento possa recordar algo do passado, é apenas uma fração do todo. Mas, por outro lado, podemos apenas sentir ou agir, e de imediato o nosso sentimento ou ação será o resultado de todas as forças do passado que convergiram na nossa individualidade. Se, portanto, quisermos rastrear as memórias das nossas vidas passadas na nossa presente consciência normal, devemos observar como nos sentimos e agimos, esperando recuperar pouco dessas memórias num mero esforço mental para recordar.

Cada sentimento e ato, então, pode ser lentamente rastreado até aos seus componentes de impressões vindas de fora e reações vindas de dentro. Tanto é assim com cada um de nós, que podemos construir para nós mesmos o que foi o passado de outro, enquanto observamos esse outro sentir e agir, desde que ele faça as duas coisas de maneira mediana. Mas se ele manifesta um modo que não é o modo comum de pensar ou sentir, então ele torna-se incompreensível para nós e precisa de explicação. Uma vez que, então, sentimentos e ações medianos podem ser prontamente explicados como resultado de experiências medianas, sentimentos e ações incomuns devem ser explicados como tendo uma causa inusitada. Se o presente escritor fizesse uma palestra em inglês na Índia, onde tantos sabem falar inglês, cada um dos seus ouvintes tomaria como certo que ele frequentou a escola e a faculdade, talvez sem se perguntarem quando e onde. Mas se ele, em vez de falar em inglês, falasse em italiano, rapidamente cada ouvinte ficaria curioso por saber como e quando essa faculdade de falar em italiano havia crescido. Além disso, se um italiano estivesse presente na audiência, a julgar pelo fraseado e entonação do orador, ele saberia que o orador deve ter vivido na Itália ou deve ter passado um tempo considerável entre italianos. Onde quer que haja alguma manifestação de sentimento ou ação – como também de algumas expressões de pensamento – que tenha algo da qualidade do especialista, então devemos postular para essa faculdade um crescimento lento através de experiências, que são o resultado de experiências nessa linha específica.

Cada um de nós tem muitas qualidades de um tipo mediano, como também algumas de um tipo especializado. As primeiras podemos explicar por experiências comuns a todos. Examinemos algumas das últimas e vejamos se podemos explicá-las em qualquer outra hipótese que não seja a da reencarnação.

Uma das principais coisas que caracterizam os homens são os seus gostos e aversões. Às vezes, estes podem ser chamados racionais, isto é, são gostos e aversões que um indivíduo médio de um determinado tipo normalmente possui no seu estado de evolução. Podemos explicar esses gostos e aversões normais, porque eles são aqueles que nós próprios manifestamos em condições semelhantes. Mas suponhamos que tomamos o caso de um gosto extraordinário, como é o chamado “amor à primeira vista”. Duas pessoas encontram-se no aparente concurso fortuito de eventos humanos, às vezes, pode ser, vindo dos confins da terra. Eles não sabem nada um do outro, e ainda segue o curioso fenómeno que, de facto, eles conhecem-se muito bem. A vida seria uma coisa feliz se pudéssemos ir com profundo afeto a todos os que encontramos; mas sabemos que não podemos, pois não está na nossa natureza. Porque então deveria estar na nossa natureza “apaixonar-nos” por um indivíduo em particular? Porque deveríamos estar dispostos a sacrificar tudo por esta pessoa que, pelo menos nesta vida, encontrámos apenas algumas vezes? Como é que parece que conhecemos o funcionamento interno do seu coração e cérebro do pouco que ele revela no nosso relacionamento convencional inicial? “Apaixonar-se” é de facto um fenómeno psicológico misterioso, mas o processo é muito melhor descrito como sendo arrastado para o amor, uma vez que o indivíduo é forçado a obedecer e não se pode abster.

Agora há duas explicações lógicas possíveis: uma é a obscena do escarnecedor, que é alguma forma de histeria ou insanidade incipiente, que pode dever-se  a “complexos”; a outra é que, nessa profunda saída de um indivíduo como especialista em sentimentos em relação a outro, não temos um primeiro encontro, mas o último de muitos, muitos encontros ocorridos em vidas passadas. Onde ou quando foram esses encontros é de pouca importância para os amantes; de facto, Rudyard Kipling sugeriu na sua “A História Mais Bela do Mundo” que é apenas para não perdermos a deliciosa sensação de nos apaixonarmos pelo nosso amado, que os bondosos Deuses nos fizeram beber do rio do esquecimento antes de voltarmos novamente à vida na terra. A principal coisa a notar, neste humor emocional de se estar apaixonado, é que a amizade não é como aquela que começa, mas como aquela que continua; e nessa atitude psicológica dos dois amantes temos a lembrança de vidas passadas, quando eles se conheceram, amaram e se sacrificaram um pelo outro.

Não muito diferente deste gostar incomum que constitui o enamoramento, é o desgostar incomum que não é tão raro na experiência humana. Algumas aversões incomuns podem ser rapidamente explicadas; mas tomem o caso de dois indivíduos que se conhecem pela primeira vez, sem saberem nada um do outro, nem sequer de ouvido, e temos por vezes o notável fenómeno de um dos dois afastar-se do outro, não externamente por gesto, mas internamente por um sentimento ou intuição. Em todos estes casos de afastamento, o curioso é que não existem sentimentos pessoais; não é um sentimento violento de “Eu não gosto de ti,” mas muito mais um estado mental impessoal onde quase nenhum sentimento se manifesta, e que pode ser parafraseado em “É sensato ter pouco a ver contigo.” Por vezes seguimos esta intuição, mas normalmente empurramo-la para o lado como injusta, e depois escolhemos compreender o nosso conhecido com a mente. Não raramente, segue-se que começamos a gostar dele, talvez até a amá-lo. Esquecemo-nos da nossa “primeira impressão,” ou pomo-la de parte como um impulso meramente irracional, mas existe um resíduo de casos onde eventos posteriores mostram que a aversão não era um impulso, mas uma intuição. Pode acontecer que depois de termos passado anos de cumplicidade com o nosso amigo, subitamente e sem qualquer aviso, ele nos apunhala pelas costas e desfere-nos um golpe mortal; e nós, na nossa dor e humilhação, recordamos aquela primeira impressão, e desejamos tê-la seguido.

De onde veio esta primeira impressão? A Reencarnação oferece a solução, que é que o injuriado sofreu em vidas passadas na mão do injuriador, e é a memória desse sofrimento que lampeja na mente como uma intuição.

body of water during golden hour
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Mais impressionantes ainda são aqueles casos onde existe ao mesmo tempo tanto gosto como aversão, tanto amor como ressentimento. Eu bem me recordo de uma senhora a descrever a sua atitude face a um amigo ao qual estava profundamente apegada nas seguintes palavras: “Eu adoro-o, mas desprezo-o!” Pergunto-me quantas esposas dizem isto diariamente aos seus maridos, ou maridos à suas esposas. Porque haverá esta mistura incompreensível de sentimentos contraditórios?

A pista é impressionantemente dada por W. E. Henley no seu conhecido poema:

Ou foram-se os anos de cavalaria 

Com o velho mundo para o túmulo,

Eu era um rei na Babilónia,

E tu eras uma escrava cristã.

O poeta prossegue dizendo-nos como é que o rei “viu e tomou”, e brincou com a criada e, como é a maneira de ser masculina, finalmente deixou-a de lado. Apesar de ela o amar profundamente, de coração despedaçado pelo seu tratamento, cometeu suicídio. Torna-se óbvio que a rapariga morreu cheia tanto de amor como ressentimento, e como colhemos o que semeamos, cada um ao renascer colhe em atitude emocional o resultado das causas passadas. Pois, desta vez o homem ama novamente, e deseja possuí-la; ela também o ama de volta, contudo não lhe permite ter o que o seu coração deseja. Então o amante chora: 

O orgulho que eu pisei agora é o meu castigo,

Pois ele pisa-me de volta;

O velho ressentimento dura como a morte,

Pois tu amas, e ainda assim te absténs;

Eu parto o meu coração na tua dura desconfiança,

E eu parto o meu coração em vão.

Henley vê com a sua visão poética que a presente situação entre os dois não pode permanecer igual para toda a eternidade; tem de haver um amor verdadeiro e uma compreensão mútua no final; e assim o poema termina com o orgulho do homem no seu passado, e a resignação no presente, com uma sugestão de algum bem de um passado que não tem de ser “desfeito” como se não tivesse qualquer valor.

No entanto, nem por uma hora desejo desfeita

A ação além da sepultura,

Quando eu era um rei na Babilónia

E tu eras uma escrava virgem.

Só pode haver um final, o do conto de fadas, já que ele tem de estar num universo onde exista apenas Um que ama, que,

As jornadas terminam no encontro dos amantes,

Sabe-o todo o filho de homem sábio.

Temos estado a considerar as manifestações da natureza emocional de um indivíduo, e é óbvio que, por causa das suas experiências, ele vai ser capaz de entender as emoções dos outros, desde que tais emoções estejam dentro daquilo que ele conheceu. Mas e aqueles indivíduos que entendem profundamente tais experiências que não vieram até si? Shakespeare compreende o funcionamento do coração e da mente de uma mulher e, também, todos os intricados processos mentais e emocionais do traidor; Dickens sabe como o assassino se sente depois de cometer um crime.

Além disso, alguns homens e mulheres dotados, quando experienciam emoções, generalizam delas o que é experienciado por todos, enquanto um não tão dotado, apesar de “uma vez mordido” não é “duas vezes tímido”, nem se torna apreciavelmente mais sábio pela mesma experiência vir até ele vezes sem conta. Os poucos dotados, por outro lado, vão penetrar na qualidade universal numa única experiência, e vão antecipar a partir dela muitas experiências de natureza semelhante; para eles próprios, e por vezes para os outros também, vão afirmar as suas experiências, reduzindo-as como se fossem fórmulas algébricas, cada fórmula incluindo numa afirmação geral todos os casos particulares. Os seus pensamentos e sentimentos são como aforismas, com a transmutação de muitas experiências numa só Experiência.

Generalizar a partir das nossas emoções individuais é um dom tão raro como originar uma filosofia a partir dos pensamentos particulares que obtemos das coisas. No entanto, é esta generalização a partir de emoções particulares que é característica de um poeta, e quanto mais universais são as suas generalizações, maior poeta ele será. Porque, então, deveria um indivíduo aqui ou acolá ter esta magnífica habilidade de ver homens particulares como representativos de tipos, e emoções particulares como expressões de emoções universais? Dizemos que tal homem é um génio, mas a palavra génio meramente descreve e não explica. Existem génios em todos os departamentos da vida ― religião, poesia, arte, música, política, no drama, na guerra e no comércio, e em muitas outras fases da vida. Estes génios são caracterizados por muitas qualidades anormais; eles são sempre homens do futuro e não dos seus dias e cada génio é um legislador para as futuras gerações no seu próprio departamento de atividade; acima de tudo, eles vivem emocionalmente e mentalmente em grandes generalizações. De onde vem esta magnífica habilidade?

Uma explicação oferecida é a hereditariedade. Mas até que ponto a hereditariedade realmente explica a genialidade? Segundo a teoria da hereditariedade comumente aceite, cada geração acrescenta um pouco a uma qualidade trazida da geração anterior, e depois transmite-a para a próxima; isto, por sua vez, acrescenta um pouco, e passa adiante o total do que recebeu, mais a sua própria contribuição; e assim por diante, geração após geração, até chegarmos a uma geração particular, e a um indivíduo dentro dela, no qual a qualidade especial, numa qualquer forma misteriosa, fica concentrada, e esse indivíduo é, portanto, um génio. De acordo com esta teoria popular, algum ancestral remoto de Shakespeare tinha uma fração do génio de Shakespeare, que transmitiu através da hereditariedade à sua descendência; esta descendência então, mantendo intacto o que lhe foi dado pelos seus pais, acrescentou à reserva das suas próprias experiências, e depois passou ambas às suas crianças; e por aí fora em sucessivas gerações, cada geração protegendo o que lhe foi dado de todas as gerações anteriores, e acrescentando algo de si própria antes de transmiti-lo para a próxima. Shakespeare, portanto, é como uma torrente de um reservatório que foi lentamente represado, mas que rebenta quando a pressão ultrapassa um certo ponto.

Tal concepção de hereditariedade baseia-se na suposição de que a faculdade que um indivíduo adquire, como o resultado de adaptação ao seu ambiente, é transmitida à sua descendência. Tal é de facto a conclusão a que chegou a escola de biólogos Darwinistas, das suas análises do que acontece na Natureza. Mas a investigação biológica durante os últimos vinte cinco anos tem sido maioritariamente dirigida para testar a validade da teoria da transmissão das características adquiridas. Não só nem um único exemplo indiscutível foi encontrado, mas todas as experiências em reprodução e cruzamento, por outro lado, acumularam provas do contrário.

A nova escola de biólogos conhecida como os Mendelianos chegou, então, a teorias sobre a hereditariedade que não são apenas novas, mas impressionantes. De acordo com eles, características estruturais, das quais depende a capacidade mental e moral de um indivíduo, existem em cada ancestral na sua totalidade; e mais, elas têm de ter estado na primeira partícula de matéria viva. Nada foi adicionado pela evolução a esta reserva original de capacidades no protoplasma. Cada génio que o mundo conheceu ou conhecerá existiu potencialmente nele, apesar de ter de esperar milhões de anos antes de surgir a combinação apropriada de “fatores genéticos” para permitir que ele aparecesse como um génio no palco evolutivo. A Natureza não evoluiu a complexa estrutura cerebral de Shakespeare a partir dos cérebros rudimentares dos mamíferos; essa complexidade existia “numa cabeça de alfinete de protoplasma.” A Natureza não evoluiu o génio; ela libertou-o apenas dos grilhões que o prendiam no protoplasma primordial, ao eliminar, geração após geração, tais fatores genéticos  que inibiam a sua manifestação. Bateson resume estas teorias modernas quando diz:

Eu tenho confiança que os dons artísticos da humanidade serão devidos não a algo adicionado à constituição de um homem comum, mas à ausência de fatores que na pessoa normal inibem o desenvolvimento destes dons. Eles devem ser considerados, quase sem sombra de dúvida, como libertações de poder normalmente suprimido. O instrumento está lá, mas está “travado”.2

Só o tempo mostrará até que ponto a concepção Mendeliana precisará de ser modificada por descobertas posteriores; mas é quase certo que o conceito Darwinista da hereditariedade é insustentável, e que se um homem é um génio ele deve muito pouco às conquistas intelectuais e emocionais dos seus ancestrais. Se, contudo, admitirmos juntamente com os Medelianos que um génio é “libertado” meramente pela remoção de fatores inibitórios, e que não é o resultado de acumulações lentas, vamos deixar o mistério original por resolver, ou seja, explicar a habilidade sintética do génio. Portanto, não estamos mais perto de explicar a natureza do génio com as linhas Mendelianas do que com as Darwinianas; as teorias da ciência dizem-nos meramente sob que condições os génios vão, ou não, manifestar-se, mas nada mais.

scenic view of the forest during sunrise
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A única teoria racional do génio, que aceita factos científicos acerca da hereditariedade e também explica o que é o génio, vem da conceção da reencarnação. Se considerarmos que um indivíduo é uma alma, isto é, um Ego imortal em evolução, e manifesta-se através de um corpo apropriado à sua etapa de crescimento e ao trabalho que deve realizar nesse corpo, então verificamos que os seus atributos emocionais e mentais são resultados de experiências que ele adquiriu em vidas passadas. Mas, uma vez que ele só pode expressá-los através de um corpo e cérebro adequados, estes devem ser do tipo que a Natureza, por hereditariedade, selecionou para esse uso. A manifestação de qualquer capacidade depende, portanto, de dois fatores indispensáveis: primeiro, um Ego ou consciência que desenvolveu essa capacidade através de repetidas experiências em vidas passadas; e segundo, um instrumento adequado, um corpo físico com uma estrutura que possibilite a expressão dessa capacidade. Assim, quando consideramos a qualidade do génio, se por um lado o génio não tiver um corpo formado por fatores genéticos que não inibam o seu génio, ele fica “reprimido”, para usar a metáfora de Bateson, e o seu génio não é libertado. Por outro lado, se a Natureza produzisse mil corpos que não fossem “reprimidos”, isso não significaria automaticamente que teríamos mil génios. Duas linhas de evolução devem convergir antes que qualquer qualidade que não seja puramente funcional possa manifestar-se. O primeiro é o da evolução de uma Consciência indestrutível, que experimenta continuamente com a vida e se torna gradualmente perita através disso; e o segundo é a evolução de uma estrutura física, que é selecionada por hereditariedade para responder a um determinado estímulo interno.

Se, com esta pista sobre o que está a acontecer na Natureza, examinarmos os vários génios que o mundo produziu, veremos que eles estão a lembrar-se das suas vidas passadas à medida que manifestam o seu génio. Tomemos, por exemplo, um génio como o jovem violinista Mischa Elman, que há alguns anos começou a sua carreira musical; ele era então apenas um rapazinho, e mesmo nessa idade manifestava uma habilidade técnica maravilhosa. Agora, talvez possamos legitimamente atribuir essa habilidade técnica ao longo das linhas Mendelianas, como sendo resultado de uma rara confluência de fatores genéticos; mas nenhuma teoria de hereditariedade física pode explicar o que surpreendeu os críticos musicais mais exigentes – a interpretação musical de Mischa Elman. Pois é precisamente nessa interpretação que um amante da música pode ver a alma do intérprete, quer essa alma seja grande ou pequena, quer o intérprete tenha conhecido a vida superficialmente ou tenha tocado o cerne da vida. Agora, a interpretação de Mischa Elman, absolutamente espontânea como foi, e não imitada de um professor, era a de um homem e não a de um rapaz. Não é de admirar que muitos críticos tenham ficado perplexos, nem que o crítico musical do Daily Telegraph Londrino tenha escrito o seguinte:

Chovia intensamente sobre o telhado e trovões rugiam e retiniam, mas Mischa Elman continuava calmamente a tocar as suas obras prescritas de Paganini, de Bach e de Wieniawski.

Calmamente é a palavra, observem bem, não de forma impassível. Já tivemos prodígios impassíveis nos nossos palcos musicais; Mischa não é um deles. No seu rosto, enquanto manuseia o arco, repousa uma grande paz, e apenas de vez em quando, com uma expressão mais decidida, ele baixa a face sobre o instrumento, como se quisesse receber dele o impulso das suas vibrações e transmitir-lhe as suas próprias batidas de alma.

A maravilha deste rapaz não reside na sua execução de passagens difíceis. Se assim fosse, talvez lhe déssemos apenas um aviso perfunctório, considerando que entre as crianças da nossa geração há tantas que tocam passagens difíceis como os seus antecessores brincavam com berlindes. Avançámos para além da mera destreza no arco e na digitação, e podemos dizer, no espírito de tempos antigos, que do recém-nascido e do bebé vem agora a perfeição de tal louvor que está ao alcance de um violino.

Pediram-nos para explicar isto, para explicar por que razão Mischa Elman, com a face encostada à madeira, revela a visão e sensibilidade de um homem que alcançou as alturas e sondou as profundezas da vida humana – simplesmente reconhecemos que o assunto está além de nós. Não podemos fazer mais do que especular e, talvez, esperar por um dia em que a ciência abrangente de uma era mais avançada do que a nossa descubra a formação cerebral ou o ajuste particular ao qual as crianças devem os poderes que homens e mulheres procuram em vão. Esses poderes podem ser as “nuvens de glória” Wordsworthianas, trazidas de outro mundo. Se assim for, que brilhante deve ter sido o nascimento de Mischa Elman! O rapaz foi ouvido numa obra de Paganini e noutra de Wieniawski, ambas boas coisas do seu género meritório, e ambas irradiadas, como não podíamos deixar de imaginar, pelo génio inconsciente que brilha tanto no mal como no bem, tirando o melhor de ambos. Não nos detemos apenas na execução dessas obras, preferindo o encanto dos momentos em que a música se entregava à misteriosa emoção do jovem intérprete e mostrava, não o rosto pintado de um charlatão, mas o rosto de um anjo!

Se ao longo das linhas da reencarnação supusermos que Mischa Elman é uma alma que, nas suas vidas passadas, verdadeiramente “alcançou as alturas e sondou as profundezas da vida humana”, então temos uma explicação razoável para o seu génio. Em cada interpretação, reflete-se a síntese das suas experiências passadas, e através da sua música ele pode contar-nos a tristeza de um homem ou a alegria de uma criança porque, enquanto homem em vidas passadas, vivenciou ambas e retém a sua memória em generalizações emocionais e intelectuais. Esta explicação também se alia à ciência, porque a teoria da reencarnação do génio implica a necessidade de uma alma musical num corpo com uma hereditariedade musical, que tenha sido “selecionado” pela evolução e desenvolvido por fatores genéticos apropriados.

A reencarnação por si só explica outro génio que deve permanecer um enigma de acordo com todas as outras teorias. Keats é conhecido na poesia inglesa como o mais “Grego” de todos os poetas da Inglaterra; ele possuía por natureza aquele sentimento único pela vida que era o tesouro do temperamento grego. Se ele tivesse sido um estudioso de Grego e imerso nas tradições da cultura Grega, poderíamos explicar essa “anima naturaliter Graeca do Keats não-grego”. Mas quando consideramos que Keats tinha “pouco Latim e menos Grego” e começou a vida como aprendiz de cirurgião e estudante de medicina, é legítimo questionar porque é que ele não canta como um poeta cristão deveria, mas sim como um pastor grego nascido nas encostas do Monte Etna. No entanto, o espanto cessa imediatamente se presumirmos que Keats é a reencarnação de um poeta grego e que ele está a recordar as suas vidas passadas ao voltar às formas de pensamento e sentimento gregos.

Com a reencarnação como pista, é interessante ver como uma pequena análise nos permite dizer onde, no passado, um indivíduo deve ter vivido. Na cultura da Europa e da América, existem três principais tipos de “reversão”: para Roma, para a Grécia e para a Índia. Qualquer pessoa que tenha estudado as instituições romanas e a concepção de vida romana encontra pouca dificuldade em notar como o temperamento inglês é em grande parte o da antiga Roma numa roupagem moderna; os valores, por exemplo, na escrita da história, de historiadores como Gibbon, Macaulay, Hume, são praticamente os mesmos dos historiadores Romanos, Salústio, Tácito, Lívio e os demais; enquanto se tomarmos os historiadores franceses, encontrá-los-emos com pouquíssima semelhança com o temperamento Romano e muito mais próximos do Grego. A equação Tennyson = Virgílio certamente não é exagerada para aqueles que conhecem a qualidade de ambos os poetas.

Encontramos a reversão à Grécia de forma muito clara em escritores como Goethe, Schiller e Lessing. Por que razão estes escritores proclamaram à Alemanha, com entusiasmo ilimitado, a mensagem do “regresso à Grécia”, a menos que soubessem, a partir das suas próprias experiências em vidas passadas, o que a cultura grega ainda tinha para oferecer aos homens? Pois o que é o entusiasmo senão o impulso da alma para experimentar uma frescura e um prazer na vida que ela conheceu noutros lugares, e cujo chamamento reconhece novamente? Estes homens entusiastas, estes pioneiros do futuro, não são meramente fenómenos ou caprichos da Natureza; pensemos neles como almas reencarnadas, lembrando no seu entusiasmo as suas vidas passadas, e eles tornam-se não meros fenómenos, mas os primeiros frutos de uma humanidade gloriosa que está por vir.

Quem estudou Platonismo não é recordado das conceções platónicas ao ler Emerson? Embora Emerson não possua a originalidade nem a audácia de Platão, ele é verdadeiramente “Grego”; não requer um grande voo de imaginação vê-lo como um seguidor Alexandrino de Platão. É também natural que Emerson, depois de entrar no ministério cristão para transmitir a sua mensagem, se tenha visto incapaz de o fazer como um ministro Cristão e tenha traçado o seu próprio caminho como ensaísta para falar da Alma do Mundo! E quem estudou filosofias indianas não reconhece os antigos filósofos Vedantinos em Kant, Fichte, Hegel, e um filósofo budista em Schopenhauer, todos regressando aos seus interesses filosóficos de vidas passadas e expressando as suas antigas convicções com ainda mais brilho?

Onde quer que as camadas mais profundas do ser de um homem sejam apresentadas ao mundo através da filosofia, literatura, arte ou ciência, podemos observar tendências iniciadas em vidas passadas. Pois a jornada da vida de um homem não é planeada e realizada nos breves anos que começam com o seu nascimento, e aquele que conhece a reencarnação pode facilmente perceber em que partes dessa jornada foram compostas.

A reencarnação, na medida em que afeta grandes grupos de indivíduos, é um estudo fascinante para aqueles com uma inclinação histórica. Mencionei que a raça inglesa como um todo é em grande parte uma reencarnação dos antigos romanos; mas aqui e ali encontramos uma pitada de Gregos em homens como Byron, Ruskin, Matthew Arnold, e nesses homens e mulheres Ingleses que têm a sensibilidade Grega para a vida e, cercados pela tradição Inglesa, são como estrangeiros numa terra estranha. Que um regressado Grego, onde quer que ele nasça nesta vida, vá para o sul da Itália ou para a Grécia, e ele começará a lembrar-se da sua vida passada na familiaridade instintiva que sentirá com o espírito oculto das árvores, lagos e colinas. Como apenas um Grego pode, encontrará alegria na luz do sol, nos pomares de limoeiros e nas vinhas e cascatas, que numa terra Grega dão a mensagem da Natureza como em nenhuma terra.

Outros há que, nascidos na última vida na Idade Média algures na Europa, talvez em Itália, Espanha ou Alemanha, quando revisitam a terra do seu nascimento anterior, sentem uma estranha familiaridade com as coisas que lhes acontecem. De formas marcantes, eles interpretam a vida das pessoas e compreendem o porquê das coisas. Para alguns, esse sentido misterioso de recordação pode ser mais forte no Egito, na Índia ou no Japão; mas onde quer que tenhamos a compreensão intuitiva de um povo estrangeiro, temos um modo de lembrar as nossas vidas passadas.

É na atitude intelectual característica dos franceses que vemos a reencarnação de grande parte do que foi desenvolvido na Grécia posterior. A clareza intelectual francesa e a perspicácia impessoal em ver as coisas “como são” (quer tragam benefícios materiais ou não) são tipicamente Gregas. E talvez, se soubéssemos mais sobre a vida dos Fenícios, veríamos que eles renasceram nos Alemães de hoje. Então, a rivalidade comercial entre a Inglaterra e a Alemanha pela conquista dos mercados do Oriente seria apenas o renascimento da antiga rivalidade entre Roma e Cartago pelos mercados do Mediterrâneo.

Uma erupção de egos Gregos é bastante evidente nos Estados Unidos da América. Na costa do Pacífico, especialmente, há muitos homens e mulheres com o simples temperamento grego da era pré-Pericleana, embora os seus antepassados frequentemente tenham sido Puritanos da Nova Inglaterra. É também na América que temos os Sofistas da Grécia em plena força nos escritores do “Novo Pensamento” que surgem naquela terra mês após mês. Neles, encontramos as mesmas características que os Sofistas da Grécia, que Platão denunciou: muito bom senso e muitas dicas úteis, uma independência de pontos de referência e tradições, uma confiança ilimitada na sua própria panaceia e a divulgação da sua mensagem do Espírito “mediante uma contrapartida”. A falta de distinção nas suas mentes, quando na Grécia, entre Sofismo e Sabedoria regressa no século XX como uma confusão entre as ideias do Novo Pensamento sobre a Vida Divina e a vida real do Espírito. Esperemos que, assim como os Sofistas ajudaram a trazer a Idade de Ouro da Grécia, os “Pensadores do Novo Pensamento” sejam os precursores desse Verdadeiro Pensamento que está para surgir, que não é nem antigo nem novo.

body of water between green leaf trees
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Aqui e ali na Índia encontramos alguém que claramente não é Hindu. Na maioria das vezes, os hindus modernos parecem não ter estado em outras terras nas suas encarnações anteriores; mas de vez em quando encontramos um homem ou uma mulher para quem as instituições sacrossantas da ortodoxia não têm significado, e que adotam avidamente ideias Ocidentais de progresso. Alguns desses são “retornados de Inglaterra”, nesta encarnação atual, e assim podemos explicar a sua mentalidade. Mas quando encontramos um homem que nunca deixou a Índia, que foi criado na estrita ortodoxia e, no entanto, luta com entusiasmo por formas de pensamento estrangeiras, certamente temos aqui um ego “retornado da Europa”, da Grécia ou de Roma ou de alguma outra das muitas terras do Ocidente.

Não devemos esquecer de chamar a atenção para os egos da Grécia que voltaram à Europa para inaugurar a era da arte. Para quem está familiarizado com a escultura e a arquitetura Gregas, não é difícil ver os artistas Gregos renascidos nos mestres Italianos da pintura e da arquitetura. O culto já não é o de Palas Atena e dos Deuses; agora há a Virgem Maria e os santos para lhes dar as suas coroas celestiais. De onde ganharam os mestres italianos a sua destreza de toque, senão de um nascimento passado na Grécia? É também impressionante como os Romanos, que se destacaram na arte da retratística, renasceram na escola inglesa de pintores de retrato, como Gainsborough, Reynolds, Lawrence e os outros.

Também não podemos esquecer o grupo de Gregos que, como uma inundação, varreu o palco Elisabetano. Marlowe, Beaumont, Fletcher, Peele, Johnson e os outros — não são eles pagãos mal disfarçados com vestimentas Inglesas? Eles sentiam a vida de maneiras não inglesas; eles sentiam primeiro e depois pensavam o sentimento. O Grego é sempre o Grego, independentemente do idioma que lhe é dado para falar, e a sua influência na literatura e na arte não é facilmente dissimulada.

Impressões fortes deixadas na consciência numa vida passada muitas vezes aparecem no presente sob algum estado de espírito ou sentimento curioso. Às vezes, medos de coisas rastejantes, fogo, instrumentos cortantes, etc., podem ser explicados dessa forma, embora essas “fobias” às vezes sejam apenas lembretes subconscientes desta vida. Nos casos em que não temos consciência subconsciente do aparecimento do corpo atual, certamente houve algum choque, que pode ter resultado em uma morte violenta, numa vida passada. Os efeitos posteriores aparecem agora num medo incontrolável ou num desconforto na presença do objeto que causou o choque. Mais estranha é a atitude de um indivíduo em relação a outro, que é trazida de uma vida passada. Às vezes, vemos a cena estranha de uma menina de dez ou doze anos cuidando da própria mãe de uma maneira materna, como se as posições estivessem invertidas, e quase como se ela tivesse o pesado dever de educar a sua mãe da maneira certa. De natureza psicológica mais profunda é quando, às vezes, uma esposa unida a um marido que lhe causa sofrimento encontra a compaixão por ele apenas possível quando o vê não como o seu marido, mas como o seu filho. Aqui temos uma lembrança de uma vida em que ele era realmente o seu filho, e o seu melhor lado revelava-se na relação que ele tinha com ela naquela época.

Um exemplo bastante humorístico de recordação passada é encontrado quando houve uma mudança de sexo entre a última vida e esta. Especialmente no Ocidente, onde há uma diferenciação temperamental mais marcada entre os sexos do que no Oriente, não é incomum que a menina que não gosta de brincar com bonecas, que se deleita com jogos de meninos e é uma verdadeira maria-rapaz, é na realidade um ego que acabou de ocupar um corpo do sexo oposto ao qual estava familiarizado em muitas vidas. Muitas vezes, uma menina sente ressentimento por usar saias, e leva alguns anos para finalmente se resignar a elas. Algumas mulheres têm no seu rosto e maneira de se portar sinais ainda bastante visíveis da última encarnação masculina. Algo semelhante pode ser observado em alguns homens, que trazem para esta vida traços dos seus hábitos de pensamento e sentimentos quando tinham corpos de mulher.

Uma reflexão sobre os muitos enigmas psicológicos que enumerei mostrará que, na verdade, as pessoas lembram-se de algo das suas vidas passadas. É verdade que a memória é indireta, apenas como um hábito ou um estado de espírito, mas ainda assim é uma memória do passado. Agora, a maioria das pessoas que está disposta a aceitar a reencarnação como um facto da vida naturalmente fazem a pergunta: “Mas porque não nos lembramos completamente?” Para isso, há duas respostas, sendo a primeira delas: “É melhor para nós não nos lembrarmos diretamente e completamente até estarmos prontos para essas memórias”.

Não estamos prontos para a recordação enquanto ainda somos influenciados pelas memórias do passado. Por exemplo, onde a memória é de um evento doloroso, até certo ponto o passado não influencia apenas o nosso presente, mas também o nosso futuro, e ambos de forma prejudicial; portanto, enquanto ainda não ultrapassarmos a esfera de influência do passado, o nosso caráter é enfraquecido e não fortalecido pela recordação. Vamos considerar um caso extremo, mas ainda assim típico. Suponhamos que na última vida um homem tenha cometido suicídio como a maneira mais fácil de escapar das suas dificuldades. Ao morrer, haverá na sua mente muito sofrimento mental, e especialmente não terá confiança nas suas capacidades de superar a tempestade. O suicídio não põe fim ao seu sofrimento, pois após a morte ele continuará por algum tempo ainda mais agudamente, até que se esgote lentamente. Haverá uma purificação através do seu grande sofrimento, e quando terminar, terá uma visão mais clara e uma resposta mais plena aos impulsos da sua natureza superior. Quando, então, renascer, ele nascerá com uma consciência mais forte, como resultado dos seus sofrimentos. Mas ele ainda manterá a falta de confiança nas suas capacidades, porque nada aconteceu após a sua morte para alterar isso. A confiança só pode ser adquirida ao dominar as circunstâncias, e é para esse propósito específico que ele regressou. Agora, mais cedo ou mais tarde, ele será confrontado com uma situação semelhante àquela em que falhou na última vida. À medida que as dificuldades se acumulam na nova vida, haverá mais uma vez a antiga luta.

O facto de ter cometido suicídio vai agora manifestar-se como uma tendência para o suicídio novamente, como uma resignação para se suicidar como o caminho mais fácil. Por outro lado, a memória do sofrimento após o último suicídio também regressará com uma consciência mais forte de que desta vez a solução não deve passar pelo suicídio. Nesta condição de tensão mental, quando o homem é puxado de um lado pelo seu passado e do outro pelo seu futuro, se ele soubesse, com uma memória vívida, como cometeu suicídio no passado numa situação semelhante, é provável que fosse influenciado pela sua ação passada e que a falta de confiança fosse intensificada, resultando novamente em suicídio. O esquecimento dos pormenores angustiantes do passado permite-lhe lutar agora de forma mais corajosa. Mal nos apercebemos de como estamos a ser dominados pelo nosso passado. É, de facto, uma bênção para a maioria de nós que os bondosos Deuses lancem um véu sobre um registo que, no nosso estado atual de evolução, não pode deixar de ser deplorável em muitos aspetos.

Enquanto nos identificarmos com o nosso passado, esse passado está oculto para nós, exceto de forma indireta, como faculdades e disposições. Mas a memória direta surgirá se aprendermos a dissociar o nosso eu presente dos nossos eus passados. Somos sempre o Futuro, não o passado: e quando pudermos olhar para o nosso passado – desta vida primeiro e depois, das vidas anteriores – sem paixão, de forma impessoal, em perspetiva, como se fôssemos um juiz que não tem qualquer sentido de identidade com os factos perante ele para julgamento, então começaremos a lembrar, diretamente, o passado em detalhe. Até lá, como Tennyson diz com razão,

Percorrendo esta trilha inferior,

O caminho que percorremos, com espinhos e flores,

É sombreado pelo passar das horas.

Para que a vida não falhe ao olhar para trás.

A segunda razão para não nos lembrarmos diretamente das nossas vidas passadas é esta: o “Eu” que faz a pergunta “Por que não me lembro?” não viveu no passado. É a Alma que viveu, não este “Eu” com todas as suas limitações. Mas não é esse “Eu” a própria Alma? Para a maioria das pessoas, não, de forma alguma, e esse facto será evidente se refletirmos sobre a questão.

O homem comum ou a mulher comum é pouco mais do que um conjunto de atributos de sexo, credo e nacionalidade. Mas a Alma é imortal, ou seja, não tem a sensação de diminuição ou morte; ela não tem ideia de tempo, que a ilude fazendo-a pensar que é jovem, que se desgasta e envelhece; ela não é nem homem nem mulher, porque está a desenvolver em si as melhores qualidades de ambos os sexos; ela não é Hindu, nem Budista, nem Cristã, nem Muçulmana, porque vive Uma Vida Divina e assimila essa Vida de acordo com o seu temperamento; ela não é Indiana, nem Inglesa, nem Americana, pois não pertence a nenhum país, embora o seu invólucro mais externo, o corpo físico, pertença a uma raça específica; ela não tem casta nem classe, pois sabe que todas participam de Uma Vida, e que diante de Deus não há Brahmane nem Shudra, Judeu nem Gentio, aristocrata nem plebeu.

É esta Alma que projeta uma parte de si mesma, uma Personalidade, pelo período de uma vida, “como um mero sujeito de experimentação e experiência séria”. Através de uma persona, uma “máscara”, de um bebé, criança, jovem ou rapariga, homem ou mulher, solteiro, solteira ou chefe de família, homem idoso ou mulher idosa, ela observa a vida e, à medida que observa, elimina o viés distorcido que o seu invólucro externo lhe confere. As suas personalidades no passado foram Lemurianas, Atlantes, Hindus, Romanas ou Gregas, e ela seleciona o melhor delas e descarta o resto. Todas as literaturas, ciências, artes, religiões e civilizações são a sua escola e recreio, a sua oficina e estudo. O seu patriotismo é para uma Humanidade indivisível, e a sua crença é cooperar com “o plano de Deus, que é a Evolução”.

É esta Alma que teve vidas passadas. Quanto desta Alma somos nós, os homens e as mulheres que fazem a pergunta: “Por que não nos lembramos das nossas vidas passadas?” O questionador é apenas a personalidade. O corpo dessa personalidade tem um cérebro cujas células não foram impressas com as memórias de uma vida passada; essas memórias estão no Homem Divino, que está além do tempo, de credos e de terras. Para recordar as vidas passadas da Alma, o cérebro da personalidade deve ser transformado num espelho no qual as memórias da Alma possam ser refletidas. Mas antes que essas memórias possam entrar no cérebro, os diversos viés devem ser removidos – da mortalidade, do tempo, do sexo, do credo, da cor, da casta.

Enquanto estivermos envolvidos em pensamentos mesquinhos de um nacionalismo exclusivo e em crenças estreitas de credos, continuaremos a manter as barreiras que existem entre os nossos eus superiores e os nossos eus inferiores. Uma amplitude intelectual e uma maior compaixão, “sem distinção de raça, credo, sexo, casta ou cor”, devem ser alcançadas primeiro, antes que se rompam, como através das nuvens, lampejos da nossa verdadeira consciência como Almas. Não há maneira mais rápida de descobrir o que somos como Imortais fora do tempo do que descobrir qual é o nosso Trabalho no tempo.

Se um homem ou uma mulher encontrar esse Trabalho pelo qual o sacrifício e a imolação são a serenidade do contentamento, então gradualmente a consciência mais ampla da Alma desce para o cérebro da personalidade. Com essa descida começa a memória direta de vidas passadas. À medida que a personalidade avança, desejando apenas a quantidade de luz necessária para o próximo passo em direção ao seu objetivo de trabalho, lentamente um viés após outro é queimado num fogo de purificação. Assim como o Sol dissipa mais nuvens quanto mais alto ele se eleva, assim acontece com a vida da personalidade; ela então sabe, com tanta convicção quanto o Sol sobre a sua própria natureza quando brilha, que “a alma do homem é imortal, e o seu futuro é o futuro de algo cujo crescimento e esplendor não têm limites”.

Então, regressam as memórias de vidas passadas. Como elas retornam, apenas aqueles que vivem a vida sabem. Existem muitos tipos de conhecimento útil para um homem, mas nenhum maior do que o conhecimento “de que a evolução é um facto e que o método da evolução é o constante mergulho na matéria sob a lei do ajustamento”. Esse conhecimento está disponível para todos os que procuram, se eles procurarem da maneira certa; e o caminho certo é ser um Irmão para todos os homens, “sem distinção de raça, credo, sexo, casta ou cor”.

[1] Ver The Northern Tribes of Central Australia, de Baldwin Spencer & F. G. Gillen, 1904, p. 175 e ss.

[2] Morada Presidencial, Associação Britânica, 1914.

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