Comentário ao capítulo IV do Dhammapada Pupphavagga: As Flores

O Dhammapada será certamente o texto mais divulgado do Cánon Pali, o Livro sagrado do Budismo Theravada também conhecido por Tripitaka, e está incluído no Sutta Pitaka que é o conjunto de textos que versam sobre Ética, os ensinamentos que permitem percorrer o Caminho, aquelas indicações que os peregrinos vão encontrando na sua marcha.
1 Universo floral. Pixabay

O Dhammapada será certamente o texto mais divulgado do Cánon Pali, o Livro sagrado do Budismo Theravada também conhecido por Tripitaka, e está incluído no Sutta Pitaka que é o conjunto de textos que versam sobre Ética, os ensinamentos que permitem percorrer o Caminho, aquelas indicações que os peregrinos vão encontrando na sua marcha. O próprio nome dhammapada significa caminho da Lei e todo o seu conteúdo visa orientar o discípulo na sua ascensão interior. Para esse fim usa uma linguagem que recorre proficuamente à comparação, recurso linguístico que nos leva tranquilamente do mundo nosso conhecido para as realidades desconhecidas, para aquilo que havemos de conquistar.  

O quarto capítulo, pupphavagga ou capítulo das flores, usa imagens de flores e seu universo associado para nos dar esses ensinamentos excelsos que nos podem transformar em seres humanos melhores. Na natureza, ou pelo menos no reino vegetal, que mais belo pode existir senão a flor que alia o encanto do olhar com o mistério do perfume? No reino humano, que mais elevado pode existir senão o sábio que une conhecimento com auto-domínio e acções perfeitas? Assim, deuses e santos, Buda e bodhisattvas são continuamente representados no Oriente sentados sobre lótus plenamente desabrochados. Eles já se realizaram, atingiram o Ser, a Felicidade.

Deixemo-nos levar então pelo capítulo das flores procurando perceber o longo caminho a percorrer pela humanidade.

Abarcando do versículo 44 ao 59, toca vários temas que não são exclusivos deste capítulo aparecendo também estas mesmas ideias espalhadas pelo Dhammapada. Há muitas formas de irmos caminhando… 

Juntamos os dois primeiros versículos atendendo a que jogam entre si a mesma ideia, com pergunta e resposta, um pouco à maneira do capítulo dos pares (yamaka).

  1. Quem superará esta terra, e o reino de Yama, e o mundo dos devas? Quem recolherá as bem proclamadas palavras da Lei como ágil jardineiro recolhendo adequadas flores? 
  2. O discípulo superará a terra, e o reino de Yama, e o mundo dos deuses. O discípulo recolherá as bem proclamadas palavras da Lei como ágil jardineiro recolhendo adequadas flores. 
Pétalas de rosa. Pixabay

A doutrina budista trabalha com dois factores básicos: por um lado a ilusão da existência com sua transitoriedade e, por outro, a capacidade da consciência humana ultrapassar essa ilusão. Assim, dupla possibilidade têm os seres humanos: existência com suas atribulações, característica de tudo o que nasce vive e morre, e essência com sua beatitude passível de ser alcançada através da evolução da consciência. A existência está constituída pelo plano terreno (as circunstâncias kármicas que afectam e são o cenário da vida de cada humano); pelo desconhecido mundo dos mortos (plano além da percepção dos sentidos de onde se retorna após relativo descanso para nova existência); e pelos planos subtis que constroem o próprio mundo. Para superar estes três planos constituintes da manifestação e elevar a consciência a um estado espiritual imperturbável há que não só escutar, mas também recolher. Escutar é o primeiro passo. É dar ouvidos em sentido lato, às palavras do mestre, aos sons que nos rodeiam, às palavras escritas, e a toda a natureza que nos fala se a conseguirmos compreender pois de tudo se aprende. Mas é insuficiente apenas dar ouvidos, há que recolher, assimilar, tornar nosso. Assim há que escutar as palavras da Boa Lei que foram espalhadas pelo Buda e saber recolhê-las como bom jardineiro pois, muitos são os que as escutam, mas só o atento discípulo sabe escolher as flores para as usar no seu caminho. Assim, não basta ouvir, é necessário caminhar.

  1. Quem reconhece o corpo como espuma evanescente e vê o mundo como miragem, quebrará a florida flecha de Mara e escapará à visão do rei dos mortos. 

Quando se encara o mundo sensível e o próprio corpo como realidade transitória e efémera; quando a consciência se eleva a um ponto de observador silencioso e desde essa torre de vigia contempla a contínua mudança de formas existenciais, então e só então a consciência já não é afectada pela “florida flecha de Mara”. Melhor, até consegue destruí-la, ou seja, não mais peca ou tropeça no caminho (o peccare  latino significa dar um passo em falso, tropeçar). E essa atração pelo sensível, que é o impulso do desejo no seu ímpeto de deliciosa satisfação momentânea, deixa de existir.

  1. A morte leva quem recolhe flores com mente distraída, tal como uma grande inundação arrasta uma aldeia adormecida. 
  2. A morte subjuga quem recolhe flores com mente distraída e nunca alcança satisfação.
Cerimônia. Pixabay

Morte é não-consciência, é adormecimento da Realidade. A mente distrai-se pela falta de foco na finalidade, entretendo-se na agradável multiplicidade. A imagem de um campo florido que nos ocupa com seus encantos é elucidativa para essa distração causadora da morte da consciência, morte branda e desapercebida tal como os aldeões são arrastados pelas águas durante o sono. 

Da mesma forma, continuar no deleite nunca totalmente satisfeito de recolher flores com mente distraída e apenas apreciar o mundo sensível sem mais finalidade, leva à não realização de uma consciência superior.  

  1. Tal como a abelha recolhe néctar sem ferir a flor, ou sua cor ou perfume, assim deve o sábio fazer ao cruzar uma aldeia. 

Esta comparação do bhikkhu à abelha é um ensinamento moral dirigido especificamente à comunidade dos monges, sangha. O modo de vida dos discípulos do Buda consistia em espalhar a palavra do Mestre pelo mundo, sem se preocuparem com os meios de subsistência. Durante as suas deambulações, o alimento era proporcionado pela caridade de quem escutava. Tal como a abelha ao retirar o pólen não fere a flor e até proporciona fertilidade, assim deverá proceder o monge não prejudicando outros com as suas necessidades e proporcionando bens espirituais.

Também podemos relacionar com um dos preceitos do Nobre Óctuplo Caminho: meio de existência justo. Em linguagem actual poderíamos perguntar: qual é a pegada ecológica provocada pela minha vida? Tudo quanto existe provoca desgaste no entorno e a natureza é um rotativo palco de múltiplos protagonistas procurando manterem-se no cenário num processo de sobrevivência do mais apto. Os humanos não escapam a esta realidade pois há que existir mas, precisamente como humanos, há uma “humanidade” a realizar em cada um de nós onde os valores da justiça, equanimidade, solidariedade, fraternidade, respeito por toda a vida senciente, etc., estão por cima da básica subsistência animal. Não podemos estar no caminho da sabedoria se a nossa existência for causa de sofrimentos alheios.  

  1. Nem falhas alheias, nem o que outros fizeram ou deixaram de fazer deve ocupar a mente, mas sim, o que nós próprios fizemos ou deixámos de fazer. 

Talvez este ensinamento seja tão antigo como a consciência da humanidade e perpassa todas as épocas e culturas. Talvez a raiz deste defeito seja a inconsciente busca de encontrar o erro fora de nós. Fenómeno psíquico de sobrevivência da auto-estima? De facto, e com todas as melhores intenções, quando nos sentimos capacitados e que em nós há algo de Verdade, temos tendência para empenharmo-nos mais a mudar o mundo do que a nós mesmos. O que há de mais difícil no mundo, já afirmava Tales de Mileto, é conhecer-se a si mesmo. E só podemos melhorar o mundo começando por nós, por aquilo que depende nós. 

  1. Como encantadora flor, cheia de cor mas sem perfume, assim são as eloquentes mas estéreis palavras de quem não as vive. 
  2. Mas, como encantadora flor cheia de cor e de perfume, são as frutíferas palavras de quem as vive.

Os versículos 51 e 52 são uma bela comparação entre flores e a eloquência. Quantas vezes não vimos ou sentimos ou até mesmo proferimos palavras ocas? Sim, na nossa época podemos afirmar que palavras vãs são como flores de plástico, atraentes ao olhar mas totalmente estéreis em planos mais sensíveis. Não nos importemos aqui com a demagogia pois os seus processos são fundados conscientemente nesta atitude. Mas quando escutamos alguém e notamos precisamente essa incoerência entre palavras e actos, sentimos o ridículo da situação, ou tristeza pela inconsciência de quem fala… E talvez isto também nos possa acontecer a nós próprios (certamente acontece já que pensamento, palavras e actos seguem uma sequência natural, partindo do mais veloz e subtil para o mais lento e pesado).

Podemos ter fertilidade nas palavras apenas quando são uma ponte entre o pensamento e a acção. São linguagem, logos, intermediário entre princípios e fins, entre interior e exterior, entre subjectivo e objectivo. Ao fio de ouro que liga mente, coração e actos poderemos chamar Honra. Palavra d’ honra! 

Caminho. Pixabay
  1. Tal como muitas grinaldas são feitas a partir de um amontoado de flores, assim também muitas boas acções podem ser alcançadas ao longo da vida. 

Esta é uma imagem muito linda! Procurar fazer da vida grinaldas de flores… Todos temos amontoados de flores, montes e montanhas de acções desenroladas através do percurso de vida. Se para adquirir consciência fosse suficiente agir, certamente a humanidade estaria mais evoluída. A Acção Recta é o grande desafio da Vida. Proclamado desde tempos imemoriais, não perde actualidade e vigor nos nossos tempos. Actos correctos para sobrevivermos e nos mantermos equilibrados na existência são, podemos afirmar, os “serviços mínimos” para estar no mundo. Realizar a humanidade que há em nós, ou seja, o potencial de ser humano que cada um tem, implica muito mais e começa pelo combate aos nossos egoísmos, colaborando com o nosso entorno, até à captação da Acção por Dever, que nada mais é senão aquilo que devemos ao mundo. 

Se então procurarmos agir ou fazer as coisas bem e pelo bem, em harmonia com a natureza e colaborando com ela, teremos grinaldas de flores mais do simples amontoados de flores dispersas. 

Lótus. Pixabay

  1. O perfume das flores não se espalha contra o vento, nem mesmo o de sândalo ou jasmim; mas a fragância da virtude até contra o vento se expande. O homem virtuoso atravessa todas as direcções.    
  2. Sândalo ou tagara, flor de lótus ou vassiki: entre estes tipos de perfumes, o da virtude é inultrapassável.
  3. Débil é o perfume do sândalo ou da tagara, enquanto o perfume do virtuoso se eleva até ao mundo dos devas

Os versículos 54 a 56 fazem a comparação entre a essência da flor e a essência do ser humano. À subtileza do perfume das flores corresponde a virtude nos humanos. Mas esta é muito superior pois trata-se da verdadeira espiritualidade vivida por nós: a capacidade de auto-domínio que permite uma plena integração com os outros e com a natureza em harmoniosa convivência. Este “perfume” não é afectado por circunstâncias físicas ou temporais. Sendo exalado do mais fundo do coração humano, entra em sintonia ou vibração com o coração do universo. No entanto, temos de aceitar que poucos são os que elevam esse perfume imperturbável até ao reino dos devas. A maioria de nós, se vai procurando alguma prática das virtudes, vai também encontrando os obstáculos da vida com suas dificuldades e injustiças. Estas provações são o atanor para que o perfume possa ir exalando. E pouco a pouco, cada mais insensível aos ventos que nos arrastam, podermos elevar esse perfume aos céus. 

  1. Mara não se encontra no caminho de quem possui virtudes, de quem vive sem negligência, de quem se liberta pela sabedoria. 

Mara é a atracção pelo mundo sensível, com suas delícias e prazeres levando ao apego. Portanto, o discípulo do Iluminado possuindo virtudes não a cruzará no seu caminho. As virtudes são as armas mágicas dos poderes interiores que aliadas a uma atenção ou vigilância constante levam à conquista da sabedoria. Desde os primeiros passos que virtude e vigilância caminham a par, mas também alguma gota de sabedoria já existe nesse momento de iniciar o caminho. Longa e estreita é a grande Senda e, individualmente, todas começam com a decisão de dar o primeiro passo. Aquele que tem uma antevisão da meta não se deixa desviar pelas veredas de Mara. Perdido está aquele que inicia uma caminhada e não sabe aonde se dirige.

58-59. Tal como num monte de estrume à beira da estrada cresce o perfumado e encantador lótus, assim o discípulo do iluminado Buda brilha pelo seu conhecimento entre aqueles que se desperdiçam, entre aqueles que caminham na escuridão.

E assim termina a estância das Flores do Dhammapada. O ser humano tem duas opções ao passar pela vida: dirigir a sua capacidade mental para baixo, apenas para a terra, andando em busca de uma sobrevivência material ou dos prazeres nunca satisfeitos; ou então dirigir esta capacidade especificamente humana para o céu, começando a contemplar as estrelas, fazendo brotar uma natural necessidade de crescimento interior. Só assim há individualização, desenvolvimento de uma consciência superior onde o processo de massificação já não entra. Só assim deixamos de estar entre aqueles que se desperdiçam e podemos inevitavelmente dar um pouco de luz com palavras e actos justos. Assim, cada um vai desenvolvendo o seu perfume especial…   

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