A Mandukya Upanishad fala de um Princípio Omnipresente, ilimitado e imutável, sobre o qual – diz-nos o Dr. Roso de Luna – toda a especulação é impossível. Dali emana, misteriosamente, o Sat-Asat, o primeiro símbolo, um “não-Ser” do qual emana o Ser, como diria Hegel. Neste enigma divino das emanações, os símbolos, que são os efeitos das suas próprias causas, escalonam-se, e assim por diante, até que a curvatura de todos os caminhos do Universo traga de volta todas as coisas emanadas; e o caminho percorrido torna-se uma nau de sonho que se dissolve nas águas cada vez mais diáfanas da Mente Cósmica, Mahat. Ali, na margem do oceano da manifestação, permanecem os primeiros, os símbolos eternos que se refugiam novamente na não-manifestação.
Jorge Angel Livraga em Notas de Simbologia
Muitas das actuais especulações agnósticas sobre a existência da “Causa Primeira” quase não passam dum materialismo velado, pois só a terminologia é diferente. Até um pensador tão grande como o Sr. Herbert Spencer às vezes fala do “Incognoscível” em termos que mostram a influência letal do pensamento materialista, que, como o mortal Sirocco, secou e esterilizou toda corrente de especulação ontológica. Por exemplo, quando ele chama a “Causa Primeira” (o “Incognoscível”) de “poder que se manifesta através dos fenómenos” e “uma energia infinita e eterna”, é bastante claro que ele concebeu apenas o aspecto físico do Mistério do Ser, isto é, apenas as Energias da Substância Cósmica. O aspecto eterno da Realidade Única, a Ideação Cósmica, não está de modo algum fora de consideração, e quanto ao seu Númeno, parece não existir na mente do grande pensador. Sem dúvida, esta abordagem unilateral do problema deve-se em grande parte à prática perniciosa do Ocidente de subordinar a consciência à Matéria, ou de a considerar como um “subproduto” do movimento molecular.
H.P.Blavatsky em “A Substância Primordial e o Pensamento Divino” da Doutrina Secreta (Simbologia)
Como explicou Sri Ram, há uma grande diferença entre a filosofia ocidental moderna e a da Índia védica. Na primeira, cada um dos seus protagonistas – baseando-se mais ou menos nos outros, ou na sua própria intuição, ou talvez nas próprias memórias da sua alma muito antiga, ou na sua própria leitura do Real – formulou um caminho (método) ou mesmo uma visão do mundo, para chegar à compreensão das grandes questões. Pensemos em Kant, Hegel, Descartes, Leibniz ou Bergson, por exemplo. Na Índia, porém, a filosofia védica não é assim. E não incluímos o Jainismo e o Budismo, considerados heresias, nem o Charvaca ou o cepticismo, que seria visto como uma aberração da alma aprisionada numa tal ignorância que impede o sentido interior de se abrir às verdades mais elementares que seriam quase como axiomas para o sentido interior. Todos os seus grandes sábios, afirmando a autoridade dos Vedas (e, portanto, dos seus profetas inspirados ou rishis) ou a dos seus predecessores, afirmaram-se numa das Seis Escolas de Filosofia ou Darshanas. H.P. Blavatsky explica que estas seriam como as seis dimensões a partir das quais podemos nos voltar para o mistério, e que uma sétima, Atmavidya, seria a chave para todas as anteriores, que se dividem em:
Purushíacas, em que há uma preponderância do espiritual (purusha): a Purva Mimansa ou Cerimonial, de Jaimini e a Vedanta ou Utara Mimansa ou Metafísica de Vyasa (e Shankaracharya, que foi o seu grande divulgador e a levou ao seu apogeu).
Prakríticas, na qual a explicação gira principalmente em torno da prakriti (matéria, natureza): Nyaya ou Lógica de Kanada, Samkhya ou Discriminativa de Kapila e Vaiseshika ou Atomística de Kanada.
Misto, de certa forma, o Yoga ou Prática, que baseia a sua teoria quase inteiramente no Samkhya, com a sua descrição da Natureza em vinte e quatro categorias e três gunas ou qualidades de prakriti (rajas – excesso, tamas – defeito e sattva – justo meio).
Ser-se filósofo é fazer perguntas, e isso é quase sinónimo de procurar a causa e o efeito. O porquê indica a causa, o para quê não é o efeito, mas aquilo a que Aristóteles chama de causa final; o como é a causa formal do mesmo filósofo de Estagira; o quem da causa agente. Esta capacidade de fazer perguntas e tentar responder-lhes, procurando a verdade, é a quintessência da condição humana. Assim vemos, na história da filosofia, teorias sempre diferentes do que é causa e da relação entre causa e efeito.
Se procurarmos num dicionário filosófico, encontramos a definição de causalidade como “a ligação entre duas coisas – seres, objectos, factos – em virtude da qual a segunda é univocamente previsível a partir da primeira”. Esta causalidade é geralmente descrita num eixo vertical ou conexão racional em que a causa é a razão do seu efeito e, portanto, dedutível dele. Ou, horizontalmente, no tempo, como uma conexão empírica em que o efeito não é dedutível (não há garantia absoluta de que possa acontecer ou não), mas é previsível com base na constância da experiência. Se eu largar um objecto mais pesado do que o ar, quando o largar, ele cairá no chão. Chamamos lei da gravidade ao facto de ter sempre acontecido, tanto quanto sabemos, e esperamos que aconteça sempre. E se não acontecer, é porque existe alguma outra força ou mecanismo que o impede.
Mas não sabemos, nem podemos saber, se é sempre assim. Os cisnes eram sempre brancos para os ocidentais até se encontrar um negro, e este não foi excepção. No exemplo da gravidade, também não sabemos porque é que os santos ou os possessos levitam, pois não parecem gerar qualquer mecanismo que se oponha à gravidade, mas simplesmente, pelas descrições, parece que a gravidade não actua sobre eles. Aqui, uma única excepção pode destruir o princípio de causa e efeito de uma lei. A acção à distância à velocidade da luz (Teoria Geral da Relatividade), ou a acção instantânea (acção imediata, testada no entrelaçamento quântico) geram uma compreensão muito diferente da realidade e da causa e efeito. Ao ponto de se falar de uma retrocausalidade quântica em que as formas do futuro, como efeitos potenciais, se cristalizam no presente e caminham para elas numa entropia inversa, que seria a lei que permite a encarnação do futuro ou “plano divino” (que já inclui o reajustamento kármico).
Assim, num bom dicionário filosófico, vemos que para Platão Causa (tradução aqui da palavra arkhe, ou ainda arkhe typos) é o princípio pelo qual uma coisa é o que é, “o melhor”, a sua “perfeição interior” que irrompe como um lótus de dentro de si mesma, ou o seu Ideal, que ele lhe chama, “reclamando da sua sombra na terra” a mais alta perfeição possível como tal. Se bem que para Platão estas seriam as “causas primeiras” ou “divinas” e a estas teríamos de acrescentar as “concausas”, que são “as limitações encontradas pela obra encontrada do demiurgo e que é constituída pelos elementos de necessidade deste mesmo mundo”. Para Aristóteles a Ciência é simplesmente o “conhecimento das causas”. Por exemplo, no ser humano, diz ele, o que o define é a sua natureza racional, ou seja, a sua “matéria”, como o bronze do sino de que é feito.
Para os estóicos, a causa é “aquilo por cuja acção se produz um efeito”, ou seja, uma espécie de motor do efeito, uma força ou agente produtivo. Eles definem uma “causa sintética”, que é a verdadeira, aquela que “quando está presente, o efeito está presente, e quando é retirada, o efeito é retirado ou diminuído”. Depois, há aquelas que se reforçam, como um arado movido por dois bois em vez de um.
O filósofo Al Gazali, honrando o conceito de “submissão a Deus” mais o misticismo do seu tempo, diz que só Deus é causa, não as coisas, e que a ligação que vemos numa ou noutra é sempre pela ligação do contacto temporal. Assim, por exemplo, a combustão é causada pelo fogo, apenas porque este existe sempre depois. Se duas pessoas empurram um bloco, o movimento do bloco é a soma dos esforços de ambas, mas talvez cada uma delas pudesse ter sido uma causa independente. Ou não, se o bloco fosse muito pesado.
Hobbes reduz a causa ao movimento e à matéria, para ele é “a acção de um corpo sobre outro, que gera ou destrói um certo estado de coisas num corpo”. Para este filósofo, o mecanismo é a única explicação racional do mundo.
Para Espinosa, tal como para a filosofia vedantina, existe apenas uma Causa, que é a substância Deus, e todos os acontecimentos do mundo são apenas modos dela, derivados de acordo com um processo geométrico.
Descartes simplifica, diz que causa é o que permite deduzir o efeito, é a sua razão, o que o determina e justifica a sua existência.
Para Leibniz, tudo o que podemos dizer sobre algo é porque esse algo é a causa, ou seja, é a raiz de todos os seus predicados.
Para Fichte, a causa é como um fogo criador, é a actividade criativa do eu infinito que se realiza de acordo com a necessidade racional absoluta.
Para Hegel, a causa é a substância reflectida em si mesma, e a causa perde-se no outro, o efeito.
Para Nietzsche, “fisiologicamente, a ideia de causa é o nosso sentimento de potência”. E uma das imagens mais claras da causa e do efeito é o pensamento e o acto de vontade de levantar um braço, e o corpo de o fazer. De facto, não temos consciência dos milhões de reacções químicas (e dos milhares de milhões de processos atómicos) que se geram para executar um simples comando mental, e tudo isto num único segundo.
O que é muito difícil, no nosso patético eurocentrismo, é encontrar num dicionário filosófico ou similar uma teoria da causa na Índia, e esta é a razão deste pequeno artigo. Mais concretamente, como se concebia a causa e o efeito nas Seis Darshanas da Índia. Vou seguir de perto o excelente livro de Jeaneane Fowler especificamente sobre estas escolas de filosofia da antiga Aryavarta, “Perspectives of Reality”, um título apropriado, uma vez que Darshana significa precisamente “perspectiva, visão”, da raiz drish-ver.
O autor explica a importância da teoria da causa na filosofia, e também na filosofia hindu, pois como podemos falar de meios válidos de conhecimento (pramanas) se não conhecemos a natureza das causas dos objectos existentes, ou até que ponto esses objectos podem tornar-se a causa de outros?
As seis escolas aceitam o karma como uma lei de causa e efeito, que leva necessariamente a colher o que é semeado; e a reencarnação como o único meio pelo qual esta lei pode tornar-se operativa, sendo estas sementes de acção (skandhas) ou sementes kármicas transportadas pelo indivíduo ao longo da sua passagem pela existência e de uma vida para outra. Recordemos que o objectivo destas escolas, ao contrário das ocidentais, é a libertação da dor, da cadeia de reencarnações que aprisiona a alma na matéria. Em todas elas, o conhecimento deve tornar-se um instrumento ou uma chave de libertação. A relação da alma com o corpo é dada como um meio pelo qual o karma pode ser executado.
Nestas seis Darshanas ortodoxas ou Escolas de Filosofia encontramos três teorias da causa:
1- Teoria Satkaryavada: De sat – verdadeiro, real, existente; karya – efeito; e vadha – teoria. Afirma que os efeitos existem de forma latente nas causas, como a coalhada no leite. A coalhada é a transformação do leite, nada de novo aconteceu, e não há mudança material no efeito. O budismo utilizará este exemplo precisamente no Dhammapada em relação à moralidade das acções humanas, que, se forem boas, alimentam, se forem más, envenenam: “Tal como o leite fresco não azeda de repente, também os frutos das más acções não chegam de repente. A sua malícia permanece oculta, como o fogo entre as brasas”.
2- Teoria Asatkaryavada, exactamente o contrário da anterior. Os efeitos não estão latentes nas causas, as causas são anteriores aos efeitos e os efeitos não existem até serem produzidos. Por outras palavras, os efeitos são algo novo, não a mera transformação das causas. E assim como a noz morre quando nasce a nogueira, a causa deixa de existir para dar origem à realidade do novo efeito.
3- Teoria de Satkaranavada, segundo a qual os efeitos não são realmente diferentes das causas, mas uma visão desfocada das mesmas. A única coisa real que existe são as causas, os efeitos são efeitos de maya, da ilusão, o poder criativo neste mundo, guiado pelo karma. A corda no caminho é uma corda, e não uma cobra, embora tu acredites que é uma cobra e fujas. Esta é a teoria da causa na Escola Vedantina.
Examinemos mais pormenorizadamente esta teoria da causa em cada uma das Seis Escolas.
NYAYA OU ESCOLA LÓGICA
Aceitando a teoria de astkaryavada, os efeitos não estão latentes nas suas causas. As causas simplesmente precedem os efeitos de uma forma invariável e incondicionada. Como a causa precede o efeito, o efeito não pode ser produzido ao mesmo tempo que a causa. Cada efeito é a consequência de uma causa e não de uma pluralidade de causas. Mas uma causa pode albergar um certo número de condições de funcionamento, tal como hoje compreendemos o significado de um algoritmo ou de uma função matemática. Não reconhecem causas remotas. O oleiro que faz o pote é a causa do pote e não o seu pai, embora sem ele não existisse o mesmo, e por conseguinte, o pote também não existiria. Por outras palavras, cada efeito é o efeito de uma causa e não indirectamente da causa anterior. As qualidades de uma causa não têm qualquer importância (a não ser que sejam causas em si mesmas), tal como a cor da caneta que uso para escrever não é causa da minha escrita. Alguém ou alguma coisa pode ser a causa de numerosos efeitos, como um oleiro de diferentes potes ou o que quer que ele faça. Mas esses efeitos estão ligados às suas causas, e não têm nenhuma relação entre si, por mais que sejam “filhos do mesmo pai”. Do mesmo modo, rejeitam que substâncias eternas, como o espaço, possam ser causas, bem como qualquer outro factor desnecessário associado à causa, o que quer que aconteça ao mesmo tempo e nada tenha a ver com o efeito.
Assim, defendem que “antes” não significa necessariamente “causa”, embora por vezes assim pareça. Por outras palavras, evitam a falácia post hoc ergo propter hoc. Cada efeito é novo, produzido pela causa (que pode ser uma combinação de factores). Embora possa haver erro, a percepção do nexo de causalidade é intuitiva e resulta da experiência. A vida, no fundo, é uma sucessão de causas e efeitos gerados pelas diferentes combinações de átomos. Todo o karma vivido por um ser humano é gerado por ele próprio como uma sucessão de efeitos que acompanham uma sucessão de causas. A actividade do ser na matéria gera três doshas: a ilusão, o desejo e o ódio, que se alimentam mutuamente, como se vê no coração da Roda da Vida budista, simbolizada por um porco, um galo e uma serpente que se mordem mutuamente num círculo.
Na filosofia Nyaya são reconhecidos três tipos de causas:
-A material ou inerente, que é a substância dravya, pela qual um efeito passa a existir, como o barro que forma o pote.
A causa não inerente, que não é uma substância, mas uma qualidade (guna) ou acção (karma) que é inerente ao material, como a cor do barro.
-A causa eficiente, que pode ser uma substância, uma qualidade ou uma acção, que é o poder que está por detrás da produção do efeito, e que pode ser, no caso do pote, o oleiro ou uma ferramenta que ele utiliza, ou uma acção que ele executa, a roda ou a água (o agregado que permite a formação da causa).
Há um poder que cria o mundo, que combinou os átomos de uma forma especial para o gerar, ou que os separa e inicia a sua dissolução. Mas os próprios átomos e as almas são eternos, e estão para além de qualquer poder que exista.
VAISESHIKA OU ESCOLA ATOMISTA
É a mais semelhante à visão do mundo da nossa ciência moderna. Os efeitos são originados como resultado das diferentes agregações e arranjos dos átomos elementares, ou seja, os efeitos seguem necessariamente as suas causas atómicas. As primeiras substâncias, porém, com os seus átomos portadores da sua diferenciação ou particularidade (visesha), nunca mudam e nunca desaparecem. É apenas quando entram em contacto com outros átomos que ocorrem as mudanças que produzem os vários objectos finitos ou estados no tempo e no espaço.
A Escola Vaiseshika afirma que há uma série de causas comuns ou sadharanakarana, que são o poder de adrashta, Deus e as substâncias do espaço e do tempo. Depois, há as causas ocasionais, como o oleiro que faz o pote e as ferramentas que ele usa para isso. Depois, há as causas específicas, como o barro com que o pote é feito. Algumas causas, para a produção dos seus efeitos, precisam de outras causas, enquanto outras dependem de outros critérios para gerar os efeitos. Na vida de cada indivíduo, tanto o mérito (dharma) como o demérito (adharma) actuam como determinantes de efeitos kármicos particulares que serão colhidos mais tarde nas suas vidas.
A sua teoria da causa é como a dos Nyaya, a de asatkaryavada, ou seja, cada novo conjunto de átomos é um efeito novo e inteiramente diferente, e não são consideradas causas remotas, mas apenas antecedentes. A individualidade surge de cada novo conjunto de átomos, mas não a particularidade (visesha), que é permanente. Os efeitos não estão presentes nas suas causas, nem são idênticos a elas. Esta filosofia reconhece que o todo é uma realidade independente das partes, o Eu é mais do que a soma das partes do corpo de que somos compostos. O Eu é mais do que a soma das partes do corpo que nos compõem. No processo de criação e dissolução do universo, que se repete eternamente, a criação é precisamente a dos conjuntos que nele assumem um papel, e a desagregação desses conjuntos é a dissolução do universo.
Adrshta (veja-se a semelhança com adrasteia, em grego, que significa “o inevitável”, e é equivalente a Némesis, Destino ou Fatalidade) é o poder oculto que actua ligando a causa ao efeito. É quando este último entra em suspensão que começa a dissolução do todo. Talvez sejam o que a Doutrina Secreta chama de “núcleos”, que duram tanto quanto um Universo, enquanto os “nucléolos” são eternos:
“Os nucléolos são eternos e imperecíveis; os núcleos, periódicos e finitos. Os nucléolos fazem parte do Absoluto. São as aberturas dessa fortaleza negra e impenetrável, que está para sempre escondida da visão humana e mesmo da visão dhyánica. Os nucléolos são a luz da eternidade que deles escapa. É essa Luz que se condensa nas Formas dos Senhores do Ser…”.
No período posterior desta Escola, Deus, Ishvara, torna-se o agente governante adrshta, isto é, a causa eficiente das ligações causais, o poder inteligente que guia os efeitos necessários das causas.
PURVA MIMAMSA OU ESCOLA TRADICIONALISTA
Esta escola, de carácter cerimonial e para quem a única coisa eterna são os Vedas, assume a teoria das causas satkaryavada, ou seja, que os efeitos ou resultados são inerentes às causas, vivem nelas. Lembremo-nos de que, ao contrário da Uttara Mimamsa ou Vedanta, esta escola é realista e pluralista. É a única que não aceita a criação e a dissolução do universo, mas que o universo é sempre o mesmo, e o modelo ideal é determinado pelos Vedas (a revelação, sruti), com as suas injunções e proibições.
A única coisa permanente na existência e no mundo material é a mudança, a transitoriedade de tudo o que evolui, pois tudo caminha para a perfeição e a libertação do karma, o que só é possível através da acção sacrificial. Mas, embora tudo mude, há sempre uma identidade na diferença, na diversidade, uma identidade causal em cada entidade.
Embora o resultado gerado pelas entidades-causa as transcenda, pois a própria natureza opera com uma mecânica ritual da qual tudo faz parte e que sabe para onde vai. Como explica o próprio Jaimini, o criador mítico-histórico desta Escola, nos seus Mimamsa Sutras, cada um se aproxima do sacrifício com o desejo de obter determinados resultados, mas uma vez posta em marcha a “máquina ritual”, a acção já não é regida pelos desejos do sacrificador, mas passa a fazer parte de um todo maior, os desejos e a vontade entram numa engrenagem que serve um todo maior.
A lei de causa e efeito que governa toda a acção é a lei do karma, que é autónoma, opera independentemente de qualquer força divina e governa a estrutura básica do universo. A ligação entre causa e efeito é um poder imperceptível em si mesmo chamado shakti. É intrínseco à natureza das coisas como poder, essência ou força e é o que faz com que a bolota se torne um rebento, uma planta e depois um carvalho.
Como dizem os seus filósofos, shakti é o poder que faz o fogo arder e fumegar, o poder de dar significado e passar à acção na fala, o poder de iluminação na luz.
Quando nos concentramos no cerimonial, a ligação entre as acções executadas e os frutos posteriores, a ligação que é invisível e na qual operam forças ocultas da natureza e a que hoje chamaríamos magia ou encantamento ou selagem, eles chamam apurva. É o elo entre a causa e o efeito na magia, no sacrifício ritual. Depois de terminado o cerimonial, o fogo extingue-se, mas o fio invisível que produzirá os resultados permanece. Como o próprio Jaimini diz:
“Uma vez que a natureza do acto de sacrifício é perecível (porque começa e acaba), se o sacrifício perecesse sem ter trazido outra coisa à existência, tendo então a causa deixado de existir, o resultado (sob a forma de céu) nunca poderia acontecer”.
O lugar de Deus nas outras Escolas ou religiões é ocupado pelo Karma, omnipotente, e é o homem, semeando e colhendo, que faz funcionar o mundo, embora o faça geralmente às cegas. As duas forças que regem tudo são: 1) a vontade, que sela magicamente, de apurva, e 2) o ajustamento feito pelo karma, conforme seja ou não o plano da natureza, isto é, o desígnio estabelecido nos Vedas. Isto é levado ao limite na medida em que são os méritos e deméritos humanos que contam na forma como o mundo é e como muda.
Jaimini separa as causas ou acções em primárias e subsidiárias. As primárias derivam dos apurvas, que são igualmente primários e independentes. As subsidiárias dependem das primeiras, carecendo de apurvas autónomos. Ambas estão ligadas a formas particulares, a uma sintaxe e a um tipo de injunção védica. Pois as máximas védicas são como fórmulas matemáticas ou leis da natureza ideal, sendo as palavras e designações eternas e imutáveis, e dando o padrão para tudo o que deve ser realizado no espaço e no tempo pela vontade humana.
SAMKHYA OU ESCOLA ENUMERATIVA
Nesta Escola, Prakriti, a Natureza Ideal é a Causa de tudo o que existe e vive, desdobrando-se a partir da sua potencialidade abstracta como um bailarino que executa os seus movimentos perante o olhar do amado, o espírito, Purusha. Todos são transformações desta primeira e única causa real. Aceitam, portanto, a teoria de satkaryavada, segundo a qual os efeitos vivem potencialmente nas suas causas. Por outras palavras, todo o mundo fenomenal está presente na sua causa ideal, Prakriti, e é o desenvolvimento natural da mesma através das combinações das três qualidades da matéria (gunas), nomeadamente rajas – excesso, tamas – defeito e sattva – justo meio. Nos períodos de dissolução universal ou pralaya, esta causa ideal permanece e está subjacente, mas não há desequilíbrio dos três gunas para mover o acto criativo.
No Samkhyakarika de Krishnaishvara, a grande obra basilar desta Escola, compilada no final da vida da Escola, é feita menção a um tal estado neutro, prayala ou incondicionado, que é a raiz da árvore da existência e ao qual tudo regressa. É o estado de Prakriti oculto e incondicionado, que em sânscrito é avyakta. É necessário:
-Porque todas as coisas finitas do mundo precisam de uma causa.
-Por causa da semelhança de todas as coisas no mundo.
-Porque a evolução precisa de uma causa poderosa.
-Porque os efeitos são modificações de uma causa.
-Por causa da unidade e uniformidade do mundo.
Assim como no mármore estão todas as estátuas que dele podemos esculpir, ou, se quisermos em termos matemáticos actuais, nos infinitos decimais de PI estão traçados todos os livros passados, presentes e futuros (percebendo a equivalência de números e letras), assim em Prakriti estão contidos os mundos passados, presentes e futuros, e tudo nasce desta causa ideal. Quanto é necessário remover as barreiras que impedem o seu desenvolvimento. E, a longo prazo, nada pode deter o infinito poder criador de Prakriti, que agora se chama a energia do ponto zero do espaço. Pois quanto mais penetramos nas interioridades da matéria-espaço, maior é o seu poder e imaginamos, indutiva e dedutivamente, que essa progressão deve ser infinita. A analogia da enormidade do poder criador da natureza dá-nos também a chave para o compreender.
Todo o efeito vive potencialmente na sua causa, como a árvore na semente, só precisa das condições certas, nada é acrescentado à existência que não estivesse já à espera.
O Samkhyakarika também explica porque é que os efeitos são inerentes às causas:
-Porque nada pode ser obtido do nada; isto é, se o efeito não preexistir na causa, ele não acontecerá.
-Porque é necessária uma causa material adequada; e a mesma, sendo adequada, deve estar invariavelmente ligada a um efeito.
-Porque não se pode tirar tudo do nada, as coisas devem estar implícitas nas suas causas próprias.
-Porque as coisas só produzem certas coisas, o ouro não nasce do barro.
-Porque o efeito não é diferente da causa.
Assim, Prakriti (como também Purusha) é eterna, sem começo nem fim, e sem causa. E ela torna-se pradhana, a matéria primordial da qual todos os efeitos emergem e para a qual todos retornarão.
ESCOLA PRÁTICA DO YOGA
Embora a base filosófica desta escola seja muito semelhante à do Samkhya, existem pequenas variações. Aceita que os efeitos são inerentes às causas, vivem potencialmente nelas e que tudo é universalmente derivado da causa ideal, Prakriti. Essa potencialidade reside nas energias dos gunas, que, nas condições certas, se concretizam em actos. Parece que ouvimos o eco de Aristóteles de como todo o movimento é a transição da potência para o acto.
Vyasa, o grande comentador dos Yogasutras de Patanjali, no seu Yogabhaysa, dá-nos o exemplo de um agricultor que, ao regar uma parte do seu terreno, se limita a remover os obstáculos que impedem que a água de uma zona chegue à sua. Na filosofia do Yoga, o poder que remove esses obstáculos é personalizado como Ishvara, ou seja, Deus, a vontade, a inteligência e o poder que faz com que as causas se transformem em efeitos seguindo um plano (traçado na mente divina), ou seja, a mais pura ideia do Logos platónico.
Como Prakriti é una e as causas são inerentes aos efeitos, não pode haver diferença real entre o todo e as partes. Mas não no sentido de um pão em pedaços, mas, diríamos hoje, no sentido de um fractal, ou de um holograma. As diferentes buddhis (almas divinas) são portadoras de diferentes combinações kármicas e tornam-se causas dos seus respectivos efeitos que dão origem a todos os indivíduos, processos e existências na natureza.
Mas Vyasa insiste que “a causa só pode trazer para o presente o que já existe, não pode produzir o que é inexistente. Só a causa presente, ou seja, existente, pode trazer à existência um efeito na sua forma actual perceptível, não pode produzir nada inexistente”.
O yogi faz de facto o caminho inverso da causa criadora. Passa dos elementos materiais grosseiros (buthas) para os subtis (tanmatras), daí para o labirinto da sua mente (manas), a partir do qual procura a consciência do seu eu (ahamkara), supera a sua separabilidade para fazer surgir nele o raio da sua luz divina (buddhi), que o conduzirá à pura eternidade da natureza ideal e una de Prakriti. O viandante, que é sempre purusha, o espírito, o mistério em si (veja-se a semelhança desta palavra com parashu, o machado de dois gumes), desvendou o mistério do seu ser ao abraçar o caminho em marcha. Como se a criação se cristalizasse no labirinto da matéria, abrindo o caminho para o interior, e deixando dentro de si o raio do espírito e da libertação para desatar os nós que mantêm prisioneira essa alma-luz.
ESCOLA METAFÍSICA VEDANTA
Esta Escola, também chamada Uttara Mimamsa, aceita que os efeitos são simples transformações das suas causas, que lhes são inerentes (a teoria de satkaryavada), só que vai ao ponto de dizer que não há efeitos, que estes são ilusórios, nascidos da ignorância, como um sonho do Atman, ou um véu lançado sobre o Real que nos impede de o ver. Ou seja, a causa é uma só, é Brahman, a Consciência Suprema, a substância real de tudo, no sentido do Deus de Spinoza ou do Ontos de Parménides. Esta teoria é chamada satkaranavada, que ensina que só a causa é real, que as modificações da causa são apenas aparências, são ilusórias. O exemplo usado por Shamkara, o grande ideólogo desta Escola, é que tal como cada um de nós, enquanto bebé, criança, jovem, maduro ou velho, é a mesma verdade expressa apenas aparentemente de formas diferentes, mudanças de forma, não mudanças reais; não há mudanças reais na existência, ela é una, não-dual (causa-efeito, eu e o outro, antes e depois, dentro e fora). Assim, Brahman é apenas a causa do universo, no mesmo sentido em que uma corda é erradamente confundida com uma cobra.
Este erro ou sonho nascido da ignorância advém do facto de Atman estar aprisionado no labirinto de espelhos da mente e na identificação com aquilo a que chamamos mundo material, ou seja, está confundido com as infinitas imagens-espelho de uma existência não real. Assim, Brahman torna-se, de uma forma indirecta e não real, a causa produtora de efeitos sem qualquer mudança real. Esta causa produtora nascida da ilusão é chamada vivarta.
Apenas esta Escola entre as Seis Darshanas considera que o mundo que vemos não passa de uma falsa aparência, uma ilusão. Essa teoria é chamada de teoria de vivartavadha e Shamkara descreve-a assim nos seus Comentários à Bhagavad Gita:
“No que diz respeito aos pares de opostos, como o calor e o frio, e às suas causas, não os achamos reais quando os examinamos de perto com os meios adequados de conhecimento (percepção, inferência e outros). Pois são modificações, e toda a modificação está sujeita a alterações. Todos os objectos formados, como um pote, são irreais, pois examinados a olho nu não passam de barro ou de outra causa material. E, do mesmo modo, qualquer outra modificação é irreal, uma vez que não encontramos nada para além da causa substancial a partir da qual foi formada. Além disso, não pode ser conhecida antes da sua criação ou depois da sua destruição. Mesmo a causa material em si, a argila, juntamente com a sua própria causa material, não encontramos outra coisa senão as causas substanciais de que são compostas, e daí a sua irrealidade”.
Estas mudanças aparentes de causas aparentes são o poder ilusório de maya e, na medida em que testemunhamos um mundo de efeitos, maya tem o poder de se manifestar em todas as coisas, desde o subtil ao grosseiro. Mas apenas para aqueles que não são iluminados pelo espírito, que são incapazes de ver a Realidade por trás disso.
A audácia deste salto mental leva-os a afirmar que até o próprio karma é ilusório, pois o Absoluto permanece adormecido e é consciência pura e eterna. Esta ilusão arrasta a alma nas suas reencarnações. O karma colectivo de todos os indivíduos, nascido da infinidade de impressões da mente humana aprisionada na ignorância, é a causa da natureza do outro mundo, do futuro, mais uma ilusão. Porque o real é o que foi, é e sempre será, não aceitando qualquer mudança na sua natureza. O poder da ignorância que se torna o motor das causas e efeitos é shakti. A nível individual, o karma e as encarnações que ele gera nascem das impressões inconscientemente enraizadas (samskaras) e dos hábitos (vasanas) acumulados ao longo de numerosas vidas, que construíram a prisão que engana o verdadeiro e real eu, e que são arrastados pelo nosso subtil (mas não verdadeiro, pois, num certo sentido, ele nasce e morre ou transforma-se) eu causal, o linga sharira. Assim, para além do véu de maya e das ilusões que gera, e do poder aparentemente criativo de shakti, Brahman, o Absoluto é sempre “neti, neti” (não isto, não isto), para além de toda a dualidade, nem manifesto nem não-manifesto.
Notas:
1 – Recomendo vivamente este artigo do meu amigo açoriano João Porto: https://www.revistafenix.pt/retrocausalidade-o-futuro-vindo-na-nossa-direccao/
2 – Por exemplo, o clássico de Nicola Abbagnano que seguimos neste texto.