Buddhavagga: comentário ao capítulo “O Buddha”, do Dhammapada

Imagen destacada Pandava

Existe uma velha lenda budista segundo a qual um cego de nascença dizia: [1]

— Não acredito no mundo de luz das aparências. Não há cores, nem brilhos, nem sombras. Não há sol, nem lua, nem estrelas. Ninguém viu essas coisas.

Os seus amigos respondiam-lhe que não era assim, mas ele continuava firme na sua opinião.

— O que pretendeis ver – respondia – não passa de ilusão. Se as cores existissem, eu poderia tocá-las. Não têm substância nem realidade.

Naquela época vivia um médico que foi visitar o cego; misturou quatro elementos simples e curou-o da sua cegueira.

Esta simples lenda fala-nos da limitação dos nossos sentidos, os quais utilizamos para indagar a realidade. Do mesmo modo que um cego poderia negar a existência do mundo das cores e das estrelas, aquele a quem faltam os seus sentidos internos pode negar a existência de um mundo espiritual. Mas uma vez desenvolvido o sentido, aquilo que era oculto torna-se manifesto.

A existência de Buda encerra um grande mistério: o nirvana. Aquele que não o alcançou, não o pode conhecer. O que o alcançou, não pode descrevê-lo. Existem, contudo, ensinamentos ocultos que nos explicam o que existe na natureza interna do ser humano que permite alcançar tal estado.

Os despertos são poucos e difíceis de encontrar.

Feliz é a casa onde um homem desperta.

Bendito seja o seu nascimento.

Bendito o seu ensino do caminho.

Bendita a compreensão entre quem o segue.

Bendita a sua determinação.

E benditos os que reverenciam

O homem que desperta e segue o caminho.

Eles estão livres do medo.

Eles são livres.

Eles cruzaram o rio do sofrimento.

O nirvana implica a existência de planos metafísicos da consciência, uma sabedoria cósmica alcançável pela evolução (ou despertar) do espírito humano, uma luz pura que não é tingida pelo medo, nem pelo desejo, nem pelas emoções, nem pelos pensamentos. Na “casa onde um homem desperta” há apenas felicidade, bem-aventurança, descondicionada liberdade, imaculada beleza.

Escultura anicônica representando o nirvana final de um Buda em Sanchi. Imagem com licença Attribution-ShareAlike 3.0 Unported (CC BY-SA 3.0).

H.P. Blavatsky expõe na sua obra “A Doutrina Secreta” que o estado nirvânico se pode distinguir de um conjunto de outros estados possíveis para a consciência humana, que estão em relação, de acordo com os ensinamentos orientais, com as suas três componentes espirituais: Manas (a mente pura, o Eu Humano), Buddhi (intuição, Ego Espiritual), e Atma (Vontade, Eu Superior Divino). Estes três componentes, considerados de forma unitária, constituem aquela dimensão da natureza humana que atravessa as portas da morte e progride na sua evolução e despertar interior através dos sucessivos ciclos de renascimento.

Diz-nos o Dhammapada que longo é o caminho até ao despertar final:

Difícil é nascer,

Difícil é viver,

Mais difícil ouvir qual o caminho,

E difícil é subir, avançar, despertar.

Mas alcançar é simples.

Evita o mal.

Faz o bem.

Sê puro.

No final do caminho há liberdade.

Até lá, paciência.

Na vida diária e quotidiana, a consciência humana mantém-se nos planos inferiores àqueles, chamados de Kama-manas (a mente concreta, organizativa) e astral (o mundo das emoções e apegos). O veículo físico (stula sharira) e a sua energia (prana) completam os veículos pessoais da estrutura septenária do ser humano. Enredada nestas quatro dimensões terrenas, a consciência humana fica prisioneira dos seus desejos e apegos, das suas angústias e doenças, das suas perdas e tristezas. É certo que alegrias e prazeres vão intercalando com as dores e sofrimentos, mas uma felicidade permanente só é alcançada quando a consciência se eleva a uma região mais permanente, onde uma vida interior começa a preencher os nossos dias e derramar a sua sabedoria sobre as experiências externas.

Através de um movimento ascendente da consciência – que pode ocorrer através da contemplação artística e do pensamento científico, através de gestos e sentimentos altruístas e fraternais, ou através de uma profunda reflexão filosófica – o centro da nossa vida interior começa a deslocar-se para Manas, assim capaz de abstrair-se das suas circunstâncias espácio-temporais e captar princípios universais. Este movimento é conquistado através da completa liberdade de condicionamentos, tanto externos como internos. Essa liberdade significa um desprendimento de todos os desejos e apegos, forças que desviam a mente do recto pensamento, do recto caminho em direção à verdade.

A chuva pode tornar-se ouro

E ainda assim não te matar a sede.

O desejo é inextinguível

Ou acaba em lágrimas, mesmo no céu.

O que deseja despertar

Consome os seus desejos

Alegremente.

Com base na utilização de Manas – a mente purificada de todos os apegos – podemos obter um sentido de medida para todos os nossos atos, uma medida que é critério para a harmonia nas emoções e relações, para a escolha de uma ação justa, para o comando do recto pensamento, ou seja, a medida para uma vida sábia. Deixa de haver essa medida, que no oriente se chama Dharma, para aquele que alberga medos ou alimenta desejos. É indo além do medo e do desejo, na recta compreensão do óctuplo nobre caminho do Buda, que se podem desenvolver as virtudes humanas, alicerces fundacionais da vida espiritual.

Se magoas o outro,

Ainda não estás no caminho.

Não ofendas em palavras ou atos.

Come com moderação.

Vive no teu coração.

Eleva a consciência.

Domina-te pelo darma.

Este é o simples ensinamento do que despertou.

Uma vez sedimentada a vida moral e virtuosa, tanto prática como teórica, pode então a consciência ascender um passo mais na evolução interior através da intuição espiritual, fazendo com que a luz de Buddhi incida sobre Manas de modo a iluminá-la com a sua inata sabedoria. Aqui se compreendem paulatinamente os mistérios cósmicos e humanos, aqui se vai dominando todas as dimensões da personalidade humana, com todos os seus poderes latentes, e consequentemente se vai compreendendo as leis da harmonia e evolução da natureza.

A pintura mural tradicional do Khmer retrata Gautama Buda entrando no parinirvana. Imagem com licença Attribution-ShareAlike 4.0 International (CC BY-SA 4.0).

Isto permite alinhar a vida do sábio com as leis da natureza, fazendo da sua ação e pensamento uma expressão natural do Dharma. Este tipo de vida é descrito como um refúgio, como um lugar seguro onde não existe medo, nem desejo, nem sofrimento, pois é um caminho que se percorre através das regiões mais elevadas da nossa consciência, regiões que tocam o imutável, o duradouro e permanente, onde a mudança não mais nos afeta.

Pelo medo um homem procura abrigo

Nas montanhas ou nas florestas,

Em bosques de árvores sagradas ou em templos.

Mas onde pode esconder-se do sofrimento?

O que toma abrigo no Caminho

E caminha com aqueles que o seguem

Vislumbra as quatro nobres verdades.

A existência do sofrimento.

A causa do sofrimento.

O caminho óctuplo

Que leva ao fim do sofrimento.

Só então encontra verdadeiro abrigo.

Afastou o sofrimento.

Está livre.

Seguindo o caminho, o karma acumulado vai deste modo dissolvendo-se, vida após vida de trabalho desinteressado, degrau após degrau no despertar interior, até que as correntes kármicas vão libertando o seu espírito, unindo com indissolúveis laços o seu Eu Espiritual (Buddhi) com o seu Eu Superior (Atma). A esta união final chamou-se de libertação, iluminação ou nirvana.

Ele está desperto.

Sua é a vitória.

Ele conquistou o mundo.

Como seguir o caminho

Daquele que foi além do caminho?

Os seus olhos estão abertos

Os seus pés estão livres.

Quem o poderá seguir?

O mundo não pode retê-lo,

Nem levá-lo a desviar-se,

Nem a rede do desejo segurá-lo.

Ele está desperto!

Esta é a gloriosa e suprema meta da vida espiritual humana, cuja alma imortal é peregrina pelas regiões do medo, desejo e sofrimento, até que por fim se eleva à região da paz e da felicidade permanentes. Sabendo o seu destino, a consciência não pode mais ficar indiferente. Temos que procurar refúgio num verdadeiro caminho espiritual que nos faça avançar em direção à luz, auxiliando à medida que caminhamos quem tem vontade de caminhar junto a nós.

A pintura mural tradicional do Khmer retrata Gautama Buda entrando no parinirvana. Imagem com licença Attribution-ShareAlike 4.0 International (CC BY-SA 4.0).

Miniatura mongol do século XVIII que mostra um monge gerando uma visualização tântrica. Imagem de domínio público.

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Deixamos aqui uma tradução livre do capítulo XIV do Dhammapada, tal como o encontramos na versão inglesa de Thomas Byrom.

O iluminado

Ele está desperto.

Sua é a vitória.

Ele conquistou o mundo.

Como seguir o caminho

Daquele que foi além do caminho?

Os seus olhos estão abertos

Os seus pés estão livres.

Quem o poderá seguir?

O mundo não pode retê-lo,

Nem levá-lo a desviar-se,

Nem a rede do desejo segurá-lo.

Ele está desperto!

Os deuses velam por ele.

Ele está desperto,

Regozija na quietude da meditação

E na doçura da entrega.

Difícil é nascer,

Difícil é viver,

Mais difícil ouvir qual o caminho,

E difícil é subir, avançar, despertar.

Mas alcançar é simples.

Evita o mal.

Faz o bem.

Sê puro.

No final do caminho há liberdade.

Até lá, paciência.

Se magoas o outro,

Ainda não estás no caminho.

Não ofendas em palavras ou atos.

Come com moderação.

Vive no teu coração.

Eleva a consciência.

Domina-te pelo darma.

Este é o simples ensinamento do que despertou.

A chuva pode tornar-se ouro

E ainda assim não te matar a sede.

O desejo é inextinguível

Ou acaba em lágrimas, mesmo no céu.

O que deseja despertar

Consome os seus desejos

Alegremente.

Pelo medo um homem procura abrigo

Nas montanhas ou nas florestas,

Em bosques de árvores sagradas ou em templos.

Mas onde pode esconder-se do sofrimento?

O que toma abrigo no Desperto e no Caminho

E caminha com aqueles que o seguem

Vislumbra as quatro nobres verdades.

A existência do sofrimento.

A causa do sofrimento.

O caminho óctuplo

Que leva ao fim do sofrimento.

Só então encontra verdadeiro abrigo.

Afastou o sofrimento.

Está livre.

Os despertos são poucos e difíceis de encontrar.

Feliz é a casa onde um homem desperta.

Bendito seja o seu nascimento.

Bendito o seu ensino do caminho.

Bendita a compreensão entre quem o segue.

Bendita a sua determinação.

E benditos os que reverenciam

O homem que desperta e segue o caminho.

Eles estão livres do medo.

Eles são livres.

Eles cruzaram o rio do sofrimento.


[1] Parábola recolhida por Jorge Ángel Livraga, no seu artigo “Parábolas e Ensinamentos de Buda”.

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