Akbar, o grande enigma

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Durante o Renascimento, enquanto a Europa experienciava um grande salto de ideias em quase todos os aspetos do conhecimento, na Índia, nasceu um homem que foi Imperador do Hindustão, usaria a sua indomável coragem e incansável busca de sabedoria para tecer uma audaciosa visão social, política e espiritual no subcontinente Indiano. O seu nome era Abu’l-fath Jal-ud-din Muhammad Akbar.

Emperador Akbar o Grande. Licença domínio público.

Muitos documentários foram feitos, para justificar a denominação de Akbar, O Grande. Durante a sua vida, escrivas, artistas e poetas foram comissionados para registar a vida e fazer crónicas de eventos e circunstâncias do seu reino. Eles acompanharam-no em campos de batalha e caça, estiveram sempre presentes em tribunal para capturar as suas imagens, as suas palavras e os seus atos no tesouro de material, que lhes daria uma luz nas muitas facetas deste evidentemente extraordinário ser humano: o implacável conquistador Mogol, o solícito e liberal Raja Hindu, o desprotegido, mas iluminado Sufi místico, o generoso patrono da única mistura de cultura Indo-Persa, iconoclasta fundador de uma sincrética religião. Mas será a soma destas partes o verdadeiro reflexo do coração e tendão do homem? Ou são todos estes vislumbres separados denotativos de um profundo e unificador propósito, uma elevada motivação que conduziu a força e o combustível da sua vida?

Os historiadores concordam principalmente com os factos: Akbar, o Grande, o terceiro Imperador Mogol da dinastia de Timurid, que traçou a sua linham para Timur, genro de Genghis Khan, tinha 13 anos quando herdou o trono de seu pai Humanyun. Como um jovem príncipe, ele foi um espirituoso, rebelde e jovem distraído. Em vez de aprender matemática, história e filosofia sob tutelagem real adequada a um príncipe Mogol, Akabar permaneceu analfabeto e passou a sua infância a caçar, a domar elefantes selvagens, na falcoaria e em corridas de pombos. É, portanto, irónico que, como rei, ele tivesse que vigiar a escrita, a tradução e a ilustração de extraordinários trabalhos, assim como patrocinar generosamente artistas, músicos e poetas da sua corte. Além disto, ele patrocinou uma biblioteca de 24.000 livros em Hindavi, Persa, Grego, Caxemira e Árabe que ele absorveria ouvindo as recitações e discussões. 

No final do século XVI, Akbar governou sobre o que era indiscutivelmente o maior e mais rico império do mundo. Entre batalhas que serviram para consolidar o seu império em expansão, Akbar festejou com espetaculares e extravagantes caçadas organizadas, chamadas Qumarghas. Estas foram uma exibição eficaz da pompa e poder mogol, bem como uma forma de avaliar a capacidade para batalhar dos rajás locais nos seus territórios de origem. Por isso, foi surpreendente quando, em 1578, aos 35 anos, pouco antes de entrar no terreno de caça, de repente cancelou todos os preparativos e ordenou que nenhum animal ou ave fosse ferido. Abu’l Fazl, historiador da corte, intelectual e autor de Akbarnama [N.T. Livro de Akbar] chamou-lhe “um clarão divino de luz”. Muhammad Arif Quandahari, cronista da corte e autor de Ta’rikh-i-Akbari [N.T. Capítulo III do Livro de Akbar intitulado “A Administração de Akbar] descreve-o como “um chamamento divino”, e até Abdal Quadir Badauni, poeta, tradutor e autor conhecido por ter sido crítico das opiniões religiosas de Akbar, descreveu-o como um “estado de graça”.

Império Mogol finais do século XVI. Licença Creativa Commons.

De todos estes relatos bem documentados, parece que Akbar experimentou o que poderia ser chamado de uma espécie de epifania espiritual que mudaria o curso do seu governo. A partir daí, convidou académicos e pensadores de todas as religiões e seitas para o Ibadat Khana, a Casa de Adoração. Sufis, sunitas e estudiosos xiitas envolveram-se em discussões e argumentações complexas com pensadores das religiões brâmane, jainista, budista, zoroastrista, judaica e cristã, para que Akbar tivesse a oportunidade de avaliar a validade das suas várias crenças. A partir destas interações, Akbar concluiu que “há homens sábios a serem encontrados em todas as religiões, e homens de ascetismo, recetores de revelação e trabalhadores de milagres são encontrados em todas as nações.” Esta tornou-se a base para os princípios pelos quais Akbar passaria a governar o seu império; todas as pessoas podiam viver e adorar a Deus como quisessem, e em todas as questões legais, pessoas de todas as religiões seriam tratadas igualmente, resultando numa liberdade social, cultural e espiritual que os historiadores concordam não ter precedentes à época. Será possível que o “flash de discernimento” a que os cronistas da corte de Akbar se referiram, longe de ser uma revelação isolada e inspirada, fosse na verdade o culminar de uma busca contínua de um homem na procura de algo maior? A sua compulsão interior de passar a infância em proximidade com a natureza poderia ter sido um impulso para ver e experimentar a vida por si mesmo, em vez de o fazer através da teoria e da aprendizagem formal? Isto parece ter continuado na idade adulta também, pois Henriques, o padre jesuíta que visitou a corte de Akbar em Fatehpur Sikri, escreveu que o imperador podia muitas vezes ser visto “tosquiando camelos, partindo pedras, cortando madeira ou malhando o ferro, com tanta diligência como se fizesse parte da sua vocação particular”.

A curiosidade exuberante da criança encontraria maturidade na sua juventude, pois o próprio Akbar escreveu: “No final do meu vigésimo ano, experimentei uma amargura interna, e pela falta de provisão espiritual para a minha última viagem, a minha alma foi apreendida com uma tristeza excessiva.” Até que, finalmente, os extensos argumentos filosóficos e religiosos no Ibadat Khana o terão convencido da integridade da vida, levando-o a proclamar: “A verdade é um habitante de todos os lugares.” O que poderia fazer um monarca opulentamente rico e todo-poderoso contentar-se com todas estas atividades? Esta inquietação e melancolia seriam sinónimos de uma profunda inquietação? A sua subsequente imersão no debate espiritual terá sido uma procura de sentido? Talvez Akbar tenha encontrado algumas respostas no princípio da Harmonia e da Unidade, plasmada pelo Sulh-i-kul [N.T. Princípio Sufi de “Paz Universal”] o qual se esforçou arduamente em transmitir para todos os aspetos do seu governo, incorporando-o no tecido religioso, social, económico, político e artístico dos tempos.

O grande Imperador Mogol começou, naturalmente, a criar para si uma nova identidade que refletia a natureza cosmopolita das suas crenças. Começava o seu dia com o ritual hindu de adorar o sol da manhã. Usava um tilak na testa, um rakhi ou fio protetor no pulso e proibiu o abate de vacas. Decretou que um fogo sagrado fosse mantido em Fatehpur Sikhri, seguindo o ritual zoroastrista. Manteve os jejuns das tradições jainistas e budistas, repetiu mantras e examinou a sua consciência num esforço para encontrar um código de ética que o tornaria uma pessoa melhor e um rei digno para os seus súbditos. Numa carta dirigida a Filipe II de Espanha, escreveu que os bons imperadores devem perseguir “a possibilidade de apurar a verdade, que é o objetivo mais nobre do intelecto humano”. A harmonia também se refletiu, concretamente, em matéria de estado e na diversidade dos seus cortesãos; homens cujas linhagens hindus, muçulmanas, rajput, iranianas e turanis se traduziriam normalmente em temperamentos e crenças contraditórios, foram, no entanto, capazes de administrar e coordenar eficazmente as suas obrigações e deveres. Para consternação dos clérigos da corte, Akbar aboliu o imposto jaziya cobrado a todos os não-muçulmanos e o imposto ao peregrino cobrado nos locais sagrados hindus, proclamando que era moralmente errado penalizar qualquer um na busca da luz de Deus. Foram construídas vias com casas de repouso para ajudar peregrinos em dificuldades, e caravançarais para abrigar e alimentar os pobres. Além disso, o sati forçado foi proibido, tendo sido permitido às viúvas voltarem a casar e a idade legal para o casamento foi aumentada para 16 e 14 anos, para rapazes e raparigas, respetivamente. No seu Maktab Khana, a Casa das Traduções, uma vertente única da literatura indo-persa estava a surgir; um círculo de elite de escritores e teólogos iniciou a tradução do Mahabharata e dos Vedas, a partir do sânscrito para o persa; Akbar acreditava que “a harmonia seria encorajada se os muçulmanos se familiarizassem com este antigo sistema de pensamento”. Para promover este espírito de compreensão e concórdia, Akbar encomendou traduções de volumes persas, árabes e gregos para que todos “pudessem ter o prazer de beneficiar e procurar a Verdade Divina”. A acompanhar estas traduções, estariam sumptuosas ilustrações feitas numa mistura de estilos persas e indianos, refletindo igualmente a influência do Ocidente. O Tasveer Khana [N.T. algo como a Casa dos Artistas] de Akbar estava cheio de artistas, trabalhando meticulosamente em miniaturas pintadas com pigmentos feitos de ouro e prata, lapis lazuli, cobre e açafrão. Calígrafos e escribas foram contratados para copiar o Corão sagrado. Um estilo de arquitetura chamado Akbari, uma amálgama de características hindus, budistas, jainistas e islâmicas, começou a moldar a paisagem do Hindustão sob a forma de mesquitas, templos, palácios e jardins fúnebres.

Túmulo de Akbar o Grande. Licença Creative Commons.

Tão profundamente foi inspirado Akbar a conciliar as diferenças que dividiam o seu império e tão convencido da correlação entre as diferentes crenças, que até se atreveu a propor uma nova religião chamada Din-i-Ilahi [N.T. Religião de Deus ou Divina], que se dizia ser uma síntese de elementos retirados do islão, hinduísmo e zoroastrismo, mas também incluindo princípios do budismo, jainismo e cristianismo. Mais do que uma religião, era um código moral pessoal, para ser adotado completamente por opção, o qual procurava construir a fraternidade e unir as diversas comunidades que compunham o seu império.

Ao longo da história, quando uma civilização está em ascensão, há muitas vezes um líder cuja energia ousada e inabalável é cristalizada na construção de um ambiente propício, não apenas para alguns, mas para TODOS os que procuram elevar-se e aumentar o seu estado de consciência. Tendem a ser figuras controversas, pois remam contra a maré, agitando as águas à sua volta, enquanto mergulham dentro de si, mergulhando profundamente para encontrar a luz. Para mim, Akbar era sem dúvida um rei extraordinário em constante agitação, e foi julgado por isso muitas vezes. Puristas islâmicos vilipendiaram-no e mitos e lendas deificaram-no, Bollywood romantizou-o e as cantigas de escárnio e maldizer de Akbar e Birbal humanizaram-no. Seja como for visto, Akbar continua a ser um grande enigma e um inspirador exemplar; um rei-filósofo, cuja vida foi marcada por uma busca sincera de unidade e harmonia, e uma coragem implacável para lhe dar manifestação; um monarca poderoso que, persistentemente, se instigou para discernir o essencial do não-essencial; um imperador cuja crença na investigação racional igualou a sua profunda e permanente fé em Deus; um governante que escolheu firmemente a tolerância em vez do preconceito, a empatia ao invés da indiferença e a unidade ante a separação; e, em última análise, para nós hoje, um visionário do passado, a quem poderíamos justificadamente recorrer, para lições sobre o nosso futuro.

1 comentário

  • Roberto Cláudio Moreira

    Prezada(o) Manjula Nanavati, seu texto é uma síntese maravilhosa de um líder, que o pouco que sei, foi um buscador de unidade, absorvendo do todo. Uma multiplicidade de técnicas religiosas, culturais e artística oferecidas à humanidade e seu povo.

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