A filosofia Indiana defende que o universo não se limita àquilo que é aparente para as nossas perceções sensoriais, e que a Realidade Última nos é velada por uma cortina que nos deixa na ignorância e na ilusão. Assim, o principal objetivo da educação na Índia Antiga era perfurar esta cortina, para que o ser humano experimentasse a realização daquilo que está além do que a mente infere através dos órgãos dos sentidos, e desenvolver a mente, tornando-a num veículo de apoio, em vez de um obstáculo, a este processo. A aprendizagem era, assim, um dever sagrado, valorizado e procurado, não como uma acumulação de conhecimentos teóricos, mas como um meio para a autorrealização.
Uma das plataformas de difusão deste conceito único de educação foi a antiga tradição Indiana Gurukul. O termo Gurukul deriva de Guru[1], que significa docente [pessoa venerável] e kul, que significa família alargada ou lar. Durante todo o período da sua instrução, as crianças que integravam este sistema de ensino, deixavam a morada de família e eram integradas no agregado desta pessoa venerável (Guru). Quando a criança se aproximava dos 8 anos de idade, esta fase crucial da sua vida era santificada pela realização de uma cerimónia que representava o seu renascimento. A partir desse momento, a pessoa venerável ou docente (Guru), assumiria total responsabilidade pela criança que era agora sua pupila, a criança passava a ser conhecida como Dvija, ou nascida duas vezes.
Cabia a quem ensinava (Guru) determinar o programa e calendário de estudos, partindo de um currículo diversificado e abrangente: o conhecimento dos quatro Vedas[2] e das Upanishads[3], Matemática, Economia, Astrologia, Linguagem e Gramática, Dialética, Teologia, Política, Ciência Militar, Belas Artes, Medicina, Yoga, Artes Marciais e Tiro com Arco. (1) Além disso, quando apropriado, eram ensinadas habilidades vocacionais e providenciadas oportunidades de as praticar. A ênfase estava em dotar cada estudante para o desenvolvimento das forças que lhe permitiram superar os desafios da vida, na miséria ou na realeza, e cada estudante progredia ao seu próprio ritmo mediante a avaliação que era da responsabilidade de quem ensinava (Guru).
A criança ou jovem estudante continuaria a ser aceite perante a demonstração de uma disciplina firme, conduta e força moral irrepreensíveis. Não existia qualquer troca financeira, nem a duração do estudo estava predifinida. Cabia à pessoa venerável (Guru) indicar quando a aprendizagem estava concluída, momento em que, habitualmente, lhe era oferecido um presente de homenagem – Guru dakshina.
Esta estrutura de ensino pressupunha que as crianças e jovens estudandes assumissem um papel activo nas tarefas de apoio ao eremitério[4]. O primeiro dever do dia seria recolher lenha para manter o fogo sagrado aceso, ato simbólico do acender a mente. Era frequente que a criança que procurava ser aceite com discípula, se aproximasse da pessoa venerável (Guru), com um feixe de lenha nos braços, simbolizando a sua vontade e lealdade. Outras tarefas do eremitério incluíam as lides domésticas, sempre concebidas com o propósito de purificar o ego e promover a autoconfiança.
Frequentemente, os eremitérios localizavam-se no meio da natureza, onde a solidão silvestre incentivava ao florescimento de uma ligação entre o Ser humano e a Terra[5]. As tarefas e rotinas académicas coincidiam com os ciclos da natureza, salientando assim, a ideia do ser humano como uma parte intrincada da teia da vida. (2)
A pessoa venerável (Guru) transmitia não só os seus conhecimentos, mas também os seus valores, a sua ética e o seu modo de vida. Esta relação estreita e íntima, construída entre Guru e Shishya, era um laço sagrado e uma marca vital da educação Gurukul, permitindo a quem estudava imbuir-se de elementos intangíveis demasiado subtis para serem articulados: as atitudes profundas, as intenções inatas, a essência dos métodos e o espírito da vida e trabalho desta pessoa venerável que ensinava.
Porque o coração deste sistema era precisamente a pessoa venerável (Guru), quem aprendia pertencia não à abstracção de uma instituição, mas a esse indivíduo, a quem era concedido um respeito considerável, tal como exemplificado nos épicos, na literatura e na poesia. Muitos shlokas[6] dos Vedas deificaram a figura docente, como Acharya Devo Bhava (Taittiriya Upanishad), reconhecendo quem ensina como um repositório vivo para a preservação do conhecimento, tradição, cultura e visão.
Durante milhares de anos este legado foi transmitido pela tradição oral, no sistema Guruparamparya de sucessão entre Guru e Shishya (pessoas Mestras e Discípulas), formando uma cadeia inquebrável através das gerações.
Até ao séc. VIII EC[7] era considerado sacrilégio reduzir os Vedas à escrita, já que a educação não se reduzia à capacidade de ler, escrever e compreender; antes, a educação era algo a ser realizado e assimilado como uma parte orgânica da própria pessoa. Assim, a tradição Gurukul empregava um método de ensino único que, como mencionado nas Upanishads, consistia em três passos. (1)
Tendo isto como objectivo principal, o estudo de temas ou disciplinas mais não era que o recurso a diferentes veículos para perceber a verdade. O seu foco estava no princípio do saber, em vez do conhecimento; em perceber a verdade, em vez da mera compreensão lógica da mesma, e o seu método era Yoga: “a arte e a ciência da construção do self através da disciplina e da meditação”. (1)
A educação era então o treino de controlar a mente, de modo a podermos mergulhar nas profundezas da nossa consciencialização interior, sem nos afetarmos pelo fascínio ou aversão do mundo ilusório e material. Era uma fonte de iluminação.
O sistema Gurukul arraigou-se lentamente por toda a Índia, visto que, segundo a prática antiga, recebia o devido apoio do Reino. Assim, as despesas com a alimentação e o vestuário das crianças e jovens estudantes, tal como as necessidades da pessoa venerável ou docente (Guru), eram todas adequadamente comissionadas, assegurando que mesmo as famílias mais carenciadas pudessem enviar as suas crianças para um Gurukul. Esta tradição vibrante continuou a florescer mesmo ao lado das amplamente celebradas e prestigiadas universidades de ensino superior da Índia. Takshila, fundada em 1000 AEC, e Nalanda, fundada em 500 EC, entre muitas outras, atraíram estudantes de todo o mundo, que enfrentaram os perigos das árduas viagens, pelo privilégio de estudar sob as pessoas altamente reverenciadas e sábias da época.
Em 1830, o Reino Unido encomendou a recolha de dados sobre o número e os tipos de educação disponíveis no subcontinente, tendo Thomas Munro reportado que “havia 100,000 escolas de aldeia só em Bengala e Bihar. Os épicos, a leitura, a escrita, a aritmética e entre outras, estavam a ser ensinados“. (2) O inspector William Adams escreveu que “não se lembrava de estudar na sua escola da aldeia, na Escócia, nada que tivesse uma relação mais directa com a vida quotidiana do que o que era ensinado nas escolas da aldeia mais humilde de Bengala.” (2) Estes relatórios falavam de pessoas docentes dedicadas, de um método de transmissão de conhecimento sem violência, e de uma elevada assiduidade em toda a parte.
Contudo, com o patrocínio colonial para fundar escolas que providenciassem uma educação expressamente ocidental, tendo em vista a preparação de um quadro de pessoas nativas para assegurarem a gestão da burocracia britânica, e com a retirada das subvenções que apoiavam a educação indígena, este legado vernacular único começou a desintegrar-se lentamente. (3)
Atualmente, e em todo o mundo, na maioria das instituições de excelência académica os termos educação holística, aprendizagem experiencial, ensino centrado na pessoa aprendente (discente) e educação transformacional, são impulsionados como métodos modernos e progressivos. Mas estes mesmos conceitos eram o coração do sistema Gurukul que se enraizou na Índia por volta de 5000 AEC. Infelizmente, contudo, numa sociedade consumista a educação corre o risco de se tornar um produto, surgindo “gurus” do coaching quevendem os seus serviços, por uma taxa, a estudantes que padecem de stress e às suas, frequentemente, ansiosas e sobrecarregadas famílias.
É evidente que o papel da pessoa docente como iluminadora da Verdade tem sido desvalorizado, e muitas escolas e faculdades de renome são vistas como sendo, em primeiro lugar, campos de caça para os recursos humanos que irão alimentar os impérios corporativos internacionais.
Haverá um equilíbrio entre estas duas ideologias contrastantes que possa ser mais adequado para o nosso futuro? Ousamos imaginar uma abordagem inovadora e de mente aberta?
Sugiro que devemos… pois uma sociedade que perde as pessoas que ensinam, perde-se a si própria. Se o objectivo central da educação tiver de ser mais uma vez orientado para a descoberta do verdadeiro significado de ser humano, talvez quem estuda nas várias instituições académicas de hoje, e a sociedade em geral, tivesse muito a ganhar com um sistema híbrido que pudesse combinar infraestruturas modernas e meios tecnológicos de ensino, com alguns dos velhos princípios da venerável tradição Gurukul: um que defendesse o valor de forjar uma vida ética acima do sucesso mundano, fortalecesse a ligação sagrada entre o ser humano e a natureza, incutisse o valor da preservação da herança cultural, e encorajasse o florescimento de uma consciência espiritual que ajudasse a levantar o véu para experimentar vislumbres da Verdade eterna e infinita.
Artigo publicado por Kurush Dordi, 25 de maio de 2022.
Referências bibliográficas
1. Radha Kumad Mookerji. Ancient Indian education. Motilal Banarsi Dass Publishers. Delhi. (2016).
2. Sahana Singh. The Educational Heritage of Ancient India. How an ecosystem of learning was laid to waste. Notion Press. Chennai. (2017)
3. Dharampal. Collected Writings Volume 3. The Beautiful Tree. Indigenous Indian Education in the Eighteenth century. Other India Press. Goa. (2000)
[1] No artigo original, Guru está como significando “teacher”, podendo ser traduzido como “docente” (quem ensina), ou “professor/a” (quem transmite conhecimentos ou ensinamentos a outrem).
Na língua portuguesa “Guru” (termo sânscrito), aparece como “pessoa venerável” ou “pessoa grave”. Enquanto nome masculino, refere-se a “Líder religioso budista ou hindu”; enquanto nome de dois géneros, será “Pessoa que dá conselhos, orientações. = GUIA, MENTOR/A”; “líder carismático/a, mestre/a influente, mentor/a respeitado/a”.
Assim, opto pela tradução de “pessoa venerável”, estando mais próximo da ideia que se pretende transmitir desta figura que transmite muito mais que simples conhecimentos ou práticas.
(“guru”, in Houaiss, A.; Salles-Villar, M.; Mello-Franco, FM (2011). Dicionário do Português Atual Houaiss. Círculo de leitores e Sociedade Houaiss – Edições Culturais Lda., pp. 1240; Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/guru [consultado em 05-07-2022]).
[2] Denominam-se Vedas as quatro obras, compostas em um idioma chamado Sânscrito védico, de onde se originou posteriormente o sânscrito clássico. Os vedas consistem de vários tipos de textos, todos datando aos tempos antigos. O núcleo é formado pelos mantras que representam hinos, orações, encantações, mágicas e fórmulas, rituais, etc., endereçados a uma grande quantidade de deuses e deusas. Os mantras são suplementados por textos relativos aos rituais sacrificiais onde são utilizados e também textos explorando os aspetos filosóficos da tradição ritual. Inicialmente, os Vedas eram transmitidos apenas de forma oral. Nos dharmashastras, o estudo dos Vedas foi considerado um dever religioso dos três altos varnas (Brâmanes, Xatrias e Vaixás). A partir de certa data, as mulheres e Shudras não precisavam nem podiam estudar o Veda (isso começou a acontecer só na idade Védica ou Sutra posterior, porque numerosas evidências sugerem que a todos os humanos era igualmente permitido estudar os Vedas, e muitos “autores” védicos eram mulheres).
(in Wikipédia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Vedas [consultado em 13-07-2022]).
[3] As Upanishads, são parte das escrituras Shruti hindus, que discutem religião e que são consideradas pela maioria das escolas do hinduísmo como instruções religiosas. Contêm também transcrições de vários debates espirituais, e 12 dos seus 123 livros são considerados básicos para o hinduísmo. Surgiram como comentários aos Vedas, que são a sua finalidade e essência, sendo, portanto, conhecidos como Vedānta (“o fim do Veda”).
(in Wikipédia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Upanixade [consultado em 13-07-2022]).
[4] Eremitério, refere-se à casa ou lugar onde habita uma pessoa eremita, ou, em sentido figurado, a uma casa ou lugar afastado de povoado (= ERMO), é neste sentido que será adotado no texto.
(“eremitério”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/eremit%C3%A9rio [consultado em 09-07-2022])
[5] No artigo orignial “between Man and the Earth… emphasizing the idea of man”, literalmente “entre o Homem e a Terra…. enfatizando a ideia do homem”; ora tradicionalmente esta modalidade de ensino não estava reservada aos indivíduos do género masculino, daí optar pela tradução de “ser humano” – “Homem” é uma falsa generalização dos géneros.
[6] “Sloka” é um poema composto por estrofes de quatro versos, escrito em sânscrito, usado na maioria das obras clássicas da literatura védica, tais como o Ramayana, o Mahabharata, inúmeros Puranas e outos livros. (in Wikipédia, https://pt.wikipedia.org › wiki ›Sloka [consultado em 12-07-2022]).
[7] EC = Era Comum ou Corrente; AEC = Antes da Era Comum ou Corrente; expressão alternativa ao “a.C.” (antes de Cristo) e “d.C.” (depois de Cristo), usados para diferenciar a contagem dos anos anteriores e posteriores ao nascimento de Jesus Cristo, de acordo com o calendário gregoriano. A cronologia da Era Comum não muda a maneira ocidental de numerar os anos, nem antes nem depois de Jesus Cristo. As denominações “EC” e “AEC” são propostas como alternativas que evitam referir-se a uma determinada civilização ou religião, sendo vistas como uma norma neutra em relação à cultura e crenças.