A religião do Buda

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Artigo publicado pela primeira vez em fevereiro de 1916

Durante uma estadia de dezoito anos em terras ocidentais, tem sido para mim um espanto o pouco entendimento que existe do budismo mesmo entre pessoas cultas. Existem centenas de livros sobre o budismo nas principais línguas europeias — textos e traduções, ensaios e manuais; e ainda assim para um budista nascido nas tradições budistas, pouco fazem pelo espírito do budismo. Apesar dos textos dos entendidos ocidentais, tão eruditos e tão meticulosos, para um budista, há apenas um livro que descreve a sua fé como ele a sente, e esse o livro é um poema e não uma obra-prima de pesquisa e aprendizagem de um professor culto. É ao poema de Edwin Arnold, “A Luz da Ásia”, que um budista recorre como sendo o único livro numa língua ocidental que descreve adequadamente o budismo que ele conhece, não o das secas escrituras sagradas escritas numa língua morta, mas o verdadeiro e vivo budismo de hoje. Porque é que um budista se afasta impacientemente da magnífica erudição da Alemanha, da Inglaterra e da França, e recorre à obra de um poeta?

Primeira edição do livro Luz de Asia, de Edwin Arnold. Licença Creative Commons

A razão é muito simples e, no entanto, muito difícil para um estudioso entender. Para o professor culto do Ocidente, o budismo é um sistema filosófico, uma religião, uma moralidade, um intelectualismo esplêndido; para o budista numa terra budista, o budismo é o Buda! Como é que é possível descrever a influência da Sua personalidade entre nós, como é que isso afeta as nossas vidas e não as doutrinas filosóficas? Apenas aqueles que nasceram no Oriente podem perceber vagamente como a personalidade de Gautama, o Buda, se carimbou na imaginação do povo, com que espanto, reverência, amor e gratidão, homens e mulheres o respeitam, cuja afirmação constante é a de que Ele era um homem, e o que todos os homens se poderiam tornar. A imaginação tem jogado com a Sua personalidade com hinos de louvor e adoração, tentando perceber a sublimidade[1] e ternura do Seu caráter. 

Buddha no Museu Guimet, em París

Centenas de nomes tentam expressar a profunda emoção. Ele é o Rei da Retidão, o Mestre, o Abençoado, o Senhor do Mundo, o Mestre dos deuses e dos homens; diariamente falam sobre Ele, no Ceilão e na Birmânia, como o Senhor Omnisciente. No entanto, acreditam que Ele era um homem, como todos os homens, e não alguém para ser adorado como divino de maneiras que Ele não partilhava com os seus compatriotas. Maior a maravilha/espanto, então, nesta devoção a um homem.

Como pode alguém, não budista, por mais educado que seja, chegar ao coração do budismo sem sentir o amor, a gratidão e a reverência que aqueles, em terras budistas, têm para com o grande Mestre? Poderá dizer-se que um hindu compreende qual é o amor de Cristo que fez os santos e os mártires, inspirou a arte do Renascimento e os construtores das catedrais da Europa, por mera leitura dos Evangelhos? Será que ele consegue chegar ao espírito, sem ninguém para o guiar, apenas lendo as cartas? Pode dizer-se que ele compreende Cristo, se para ele Cristo é um mero filósofo e teórico, como um Hegel ou um Kant?

É porque Edwin Arnold se imagina budista e com a sua fantasia poética entra numa atmosfera budista, que no seu poema o Buda é a figura central, e assim o seu trabalho é para o budista uma exposição satisfatória do budismo. Vá ao Ceilão, o centro do budismo, ou à Birmânia, observar o que é a religião. Esteja presente num templo num dia de lua cheia e observe o que acontece.

Festival budista

Cada dia de lua cheia é um festival, e de manhã até à noite a vida no templo está fervilhante. Com o amanhecer chegam os piedosos homens e mulheres que naquele dia se dedicam à devoção e meditação. Estão vestidos de branco, e todos os ornamentos e jóias, as vaidades do mundo, foram deixados em casa. Para eles, um monge de manto amarelo repete em Pãli os simples votos que todos os budistas fazem, não matar, não tomar por fraude o que pertence ao outro, não cometer adultério, não mentir, e não tomar intoxicantes. Repetem os votos a seguir ao monge, mas toda a cerimónia começa com “Reverência ao Mestre, o Abençoado, o Senhor Omnisciente”. Três vezes isto é dito, e depois segue, três vezes repetindo: “Refugio-me no Buda, na Sua Verdade, e nos Seus Santos”.

É sempre com o pensamento no Mestre que todas as cerimónias começam. Depois pegam em flores frescas e vão para o santo dos santos, onde está a imagem do Mestre. A imagem está muitas vezes de pernas cruzadas em modo de êxtase, ou de pé em modo de bênção, ou reclinada sobre o lado direito como era seu costume ao meditar; mas os olhos estão sempre inclinados para baixo sobre o devoto piedoso. De um lado da imagem de Gautama, e de pé sempre, está a imagem do próximo Buda que está por vir, o Bodhisattva Maitreya, mas já em antecipação à Sua próxima aparição, chamada pelo povo de Buda Maitreya.

A imagem de Gautama é castanha, pois ele era um hindu; a outra imagem é branca, de acordo com a tradição. No Seu próprio tempo, Ele virá, quando o mundo estiver pronto, mais uma vez, para fazer o que todos os Budas já fizeram, para dissipar a ignorância e proclamar as verdades eternas.

As flores são colocadas no altar, e no antigo Pãli os devotos repetem o louvor e adoração do Buda, “perfeito no conhecimento, que fez a boa viagem que o levou à iluminação, o Professor dos deuses e dos homens, que fez o que estava para ser feito, que atravessou para a outra margem (Nirvana)”; de Sua Doutrina, a Verdade, o Dhamma[2], “convidando todos os que chegam, a serem compreendido pelos sábios por si mesmos”; dos Seus Santos do Manto Amarelo, a antiga “Irmandade dos Nobres”, que entraram no Caminho.

À noite o templo é iluminado com milhares de luzes minúsculas; multidões, vestidas de branco ou nas suas belas sedas, reúnem-se agora para ouvir o sermão, para reverenciar o Mestre, para se refugiarem nele, para fazer votos, para oferecer flores e queimar incenso, todos movendo-se com ânsia ao luar tropical em nada menos brilhante do que o branco que usam. Então, na hora marcada, com o bater dos tambores, chega o monge, com a sua escolta de assistentes devotos, para fazer o discurso. Seguindo a tradição imemorial, começa a entoar musicalmente no sonoro Pãli, “Reverência ao Mestre, o Abençoado, o Senhor Omnisciente”. Em seguida, o povo repete, juntamente com as Três Orações[3] e os Cinco Votos/Preceitos[4].

Detalhe do nascimento do Buda, arte Gandhara. Licença Creative Commons

É sobre a vida do Mestre que o monge do manto amarelo fala ao povo, como em tal lugar e em tais circunstâncias Ele fez isto ou disse aquilo; como no vale do Ganges, há 2.600 anos, o Mestre, um homem, e não um Deus, viveu uma vida perfeita de compaixão, amando os seus companheiros, como uma mãe ama o seu filho único, e mostrou o caminho para a verdade e a libertação da dor. Como é que alguém pode pensar que é competente para falar sobre o budismo sem sentir tudo isto? Pode escrever muito e até eruditamente sobre o budismo como filósofo, mas a menos que sinta no seu coração o que o Buda era, o seu budismo é do Ocidente, e não do Oriente, onde ainda paira o espírito do grande Professor.

No século VI a.C., a Índia já era velha. Os homens já falavam na altura dos seus filósofos antigos. A reencarnação era desde há séculos um ponto assente na consciência hindu. O Karma, a Lei da Ação, era como o ar que respiravam, que ninguém questionava nem sonhava questionar.

A filosofia era o essencial da vida. O sacerdotal Brahman, o guerreiro Kshattriya, o mercador Vaishya, todos participaram durante séculos em especulações filosóficas. Nem as mulheres recuaram na contribuição da sua parte para um tema totalmente absorvente. Maitreyî discute problemas filosóficos com o marido, o sábio Yãjnavalkya; Gãrgî, também, participa em muitos torneios filosóficos, embora seja vencida no final. Muitas mulheres, como Gãrgî, viajaram pela Índia, nesta fase particular do então novo pensamento, e tiveram muitos discípulos à sua volta.

As crianças também afirmam o seu direito de serem ouvidas, e cortesmente os seus anciãos ouvem-nas, pois, poderá ser o caso da criança ser um filósofo antigo que volta à vida. Nachiketas, um menino – o mais famoso na Índia – porque “a fé entrou nele”, visita o rei Yama, o governante dos espíritos dos mortos, e questiona o Rei da Morte sobre o que só ele poderia dizer, o que estava por trás de todos os nascimentos e mortes, o destino final da evolução da alma. [Katha Upanishad]. “O jovem Kavi, filho de Angiras, ensinou aos seus familiares que tinham idade suficiente para serem seus pais, e, como se destacou pelo seu conhecimento do sagrado, chamou-lhes Pequenos Filhos. Estes, movidos pelo ressentimento, pediram opinião aos deuses sobre a situação, e os deuses, tendo reunido, responderam: ‘A criança dirigiu-se a si corretamente. Porque um homem destituído de conhecimento sagrado é, de facto, uma criança, e aquele que lhe ensina os Vedas é o seu pai; pois os sábios sempre chamaram “criança” a um homem ignorante, e pai a um professor da ciência sagrada. “[Manu, II. 151-1.]

Todas as vilas e aldeias tinham a sua sala de conferências, onde os filósofos viajantes eram bem-vindos e entretidos, e muito se divertiam em disputas acessas. Todos os que tinham uma nova teoria para proclamar, homens e mulheres, velhos ou jovens, foram igualmente honrados, pois nesta plataforma todos eram iguais buscadores da Verdade.

Muitas das escolas filosóficas tinham alcunhas que chegaram até nós; havia “os do cabelo risco-ao-meio, os enguias-serpentes, os eternalistas, semi-eternalistas, os extensionistas, os fortuito-originistas, os errantes, os Amigos”[5] e assim por diante sem número. Dificilmente existe uma fase do pensamento filosófico moderno – seja de Bruno, Kant, Nietzsche, ou qualquer outro filósofo que se queira mencionar – dificilmente uma fase de ceticismo e agnosticismo, que não encontre o seu protótipo naqueles dias distantes na Índia.

No entanto, nem tudo estava bem na Índia neste momento, no século VI a.C. Uma inquietação manifestava-se por todo o mundo do pensamento. A ortodoxia manteve-se rigidamente amarrada num ritual incrivelmente cansativo, tanto para sacerdotes, comerciantes e guerreiros. Lentamente, o sacerdotal Brahman afirmando o seu direito, como intermediário entre deuses e homens, de ser mais alto que as outras duas castas duas vezes nascidas; e muitos Brahman, com pouca santidade, mas muita casta, exerceram impiedosamente o seu poder sacerdotal para oprimir aqueles abaixo deles. Um eclesiástico rígido mantinha homens ligados a funções de casta e cerimoniais, e a originalidade e iniciativa individual tinham poucas hipóteses sob a rotina todo-poderosa. Parecia também, como se os sábios de antigamente tivessem vasculhado todos os mistérios, humanos e divinos, e nada mais ficou para ser dito; mas ainda faltava algo. Filosofia após a filosofia foi estudada, e, no entanto, sentia-se a necessidade de algo, embora ninguém soubesse o quê. Foi o período do sofrimento (travail[6]) da alma da nação, e as condições gerais não eram diferentes das encontradas nas terras ocidentais no século XX.

Detalhe da vida do Buda. Licença Creative Commons

Inquietas como eram as mentes dos homens, havia algo que era quase mais percetível ainda. Lamentável em muitos aspetos foi a condição dos membros não-arianos das nações, os milhões que não nasceram duas vezes como o sacerdote, o guerreiro e o mercador. A filosofia e os aspetos mais elevados da religião não eram para os milhões de homens e mulheres de baixa casta. Os Vedas não podiam ser ouvidos por eles, nem lhes ensinaram o Segredo, de que a alma humana era a Alma Divina do Universo. Poderiam aceder apenas à periferia do conhecimento sagrado, a posse inestimável dos hindus arianos. Os Vedas seriam poluídos se fossem conhecidos por um homem de baixa casta, um Sudra; e quanto àqueles sem casta, os Párias[7], não eram considerados como parte da comunidade hindu. Daí nascerem terríveis ameaças de represálias contra qualquer um ouse colocar-se em igualdade com os duas-vezes nascidos.

Os ouvidos de um Sudra que ouve intencionalmente quando os Vedas estão a ser recitados devem ser preenchidos com chumbo derretido; a sua língua deve ser cortada se os recitar; o seu corpo deve ser dividido em dois se o decorar na sua memória. [Citado nos Vedãnta Sûtras, I, 3, validado tanto por Shankarãchãrya como por Rãmanujãchãrya]. Se assumir uma posição igual à de homens duas-vezes nascidos, sentados, deitados, em conversas ou na estrada, será submetido a castigos corporais. [Manu, e outros Textos da Lei].

Tais eram as ameaças que mantinham em sujeição espiritual e social os homens de cor escura. Pois os não-arianos, que não tinham sido araianizados pelo casamento ou por cerimónia religiosa, estavam sem casta, sem Varna[8].

As três castas mais altas, originalmente com tez clara, invasores vindos de além dos Himalaias, irmãos de sangue dos gregos e dos gauleses, tinham-se gradualmente acastanhado pelo sol indiano; mas ainda assim eram mais leves do que os conquistados, e chamaram-se de “pessoas de cor”; e as pessoas não arianas conquistadas, escuras, quase negras, eram os “sem cor”, sem Varna ou casta.

É verdade que um Sudra ou um Pária que escolheu renunciar ao mundo e dedicar-se à vida de um filósofo ascético, torna-se assim um membro daquele grupo escolhido de Sannyasis onde todos eram iguais e acima de todas as castas. Rei e padre honrariam tal homem pelo que era, esquecendo-se de como nasceu. Mas as multidões de homens e mulheres comuns, que não eram sacerdotes, nem guerreiros, nem mercadores, independentemente das suas capacidades e qualificações, foram rígidamente impedidos de entrar em contacto direto com essas maiores especulações e discussões que aliviavam a monotonia da rotina do dever diário. No entanto, como os acontecimentos mais tarde mostraram, estes milhões de uma-vez nascidos eram verdadeiros hindus afinal, para quem era mais prático morrer, conhecendo Deus, do que viver sem conhecê-lo.

O trabalho que Gautama Buda fez foi chamado de reforma do Hinduísmo. No entanto, havia muitos outros antes de Ele, que liderou o caminho. Rebeliões contra o domínio da casta sacerdotal, heterodoxias e heresias de todos os tipos, existiam antes e eram toleradas com sendo afinal parte do Hinduísmo.

Mas foi mais uma vez a personalidade do Buda que cristalizou as aspirações de liberdade de séculos, e lhes deu a ampla plataforma de uma Fé Universal. A sua reforma tem dois aspetos, sociais e religiosos.

Como reformador social, foi o maior socialista que alguma vez poderia haver, mas diferente dos socialistas de hoje, pois Ele nivelou por cima e não por baixo. Ele também proclamou uma igualdade e uma fraternidade, mas o padrão de igualdade não era o mais baixo a que todos podiam descer, mas o mais alto a que todos poderiam ascender.

O seu nível era de Brahmana, o homem reto da mais alta casta, o cavalheiro daqueles dias, nobre em conduta, sábio e sereno. Até à época de Buda, para ser considerado um Brahman era preciso ter nascido na casta mais elevada; foi Gautama quem proclamou que todo o homem, mesmo da casta mais baixa, ou ainda mais desprezado, de nenhuma casta, poderia se tornar um Brahman, ao viver a vida perfeita que todo o homem nascido na casta mais alta deveria viver. Ser um Brahman era uma questão de conduta, de educação do coração, de treino do caráter; não era uma questão de casta. Todos seriam Brahmans os “que vivem uma vida santa, que vivem uma vida reta, que vivem no caminho da sabedoria, que vivem uma vida cumprindo os seus deveres”. “Aquele que é tolerante com os intolerantes, brando com os que criticam, livre de paixão entre os apaixonados, a ele eu chamo de fato um Brahman. Eu não chamo um homem de Brahman por causa da sua origem ou da sua mãe. Ele pode ser chamado de ‘Sir’; ele pode ser rico; mas o pobre que está livre de malévolas qualidades, eu chamo de fato um Brahman”. [Vãsettha Sutta].

Detalhe da vida do Buda. Licença Creative Commons

Uma e outra vez, ele demarca a conduta do verdadeiro Brahman. “Assim como uma mãe, mesmo em risco da sua própria vida, protege o seu filho, o seu único filho, para permite-lhe cultivar a boa vontade sem limites entre todos os seres. Que ele cultive a boa vontade sem limites perante o mundo inteiro, acima, abaixo, ao redor, sem restrições, sem qualquer sentimento de distinção ou de interesses opostos. Deixe um homem permanecer firmemente neste estado de espírito enquanto estiver acordado, esteja ele de pé, sentado ou deitado. Esse estado de coração é o melhor do mundo”. [Mettã Sutta, trad., de Rhys Davids]. “E ele deixa sua mente permear um quarto do mundo com pensamentos de amor, e assim o segundo, e assim o terceiro, e assim o quarto. E assim o mundo inteiro, acima, abaixo, ao redor e em todos os lugares, ele continua a permear com um coração de amor, de longo alcance, enorme e além da medida”. [Mahã Sudassana Sutta, trad., por Rhys Davids].

Com tal ideal aberto a todos, Gautama Buddha proclamou um Socialismo que apelava para o mais elevado nos homens e não para seus interesses materiais inferiores. As castas ainda existem na Índia hoje, e mesmo em terras budistas; instintos etnológicos primitivos ganharam a batalha e o conceito de casta era mais forte do que o próprio Buda. Mas o ideal que Ele proclamou do verdadeiro Brahman ainda é a luz para quase um terço da raça humana.

A reforma religiosa que Gautama Buddha trouxe não era novidade para os pensadores de Sua época. Muitas das Suas ideias, outros haviam proclamado antes Dele. Mas a maneira como Ele as enunciou, a personalidade dominante e terna que os homens viram Nele – isso era novo. Ele não proclamou nada de novo, mas permitiu que cada ouvinte visse os mesmos velhos fatos por si mesmo, de uma nova dimensão. Ele ensinou os homens a deixar de lado a especulação e a discussão filosófica, a visar primeiro a uma mudança interior do coração através de uma vida perfeita de inocuidade e compaixão, para acalmar perfeitamente o mar tempestuoso da natureza do homem dos seus desejos crescentes de prazer ou ganho, de forma a que quando parado, poderia refletir como um espelho as profundas intuições dentro deles. Assim poderia um homem ser independente de sacerdotes e intercessores; somente assim um homem poderia ser uma luz para si mesmo e trilhar o Caminho. “Sede lâmpadas para vós mesmos. Sede refúgio para vós mesmos. Não se entreguem a nenhum refúgio externo. Agarrem-se à Verdade como uma lâmpada. Agarrem-se como um refúgio à Verdade. Não procurem refúgio em ninguém além de vocês mesmos”. [Mahã Parinibbãna Sutta].

Como a vida perfeita deve ser vivida é explicada uma e outra vez. Primeiro vêm os Quatro Esforços,

1. Não fazer nenhum mal novo;

2. Para se livrar do mal feito;

3. Promover o bem que não existia anteriormente;

4. Aumentar o bem já existente.

Dez são os atos meritórios que o devoto deve realizar:

1. Caridade;

2. Observar os preceitos

3. Meditação;

4. Dar oportunidade aos outros de participarem das suas boas ações;

5. Encantar-se com os atos meritórios praticados por outrem;

6. Atender aos outros;

7. Honrar aqueles que são os dignos de honra;

8. Explicar a doutrina;

9. Ouvir as explanações da doutrina;

10. Refugiar-se nos Três Tesouros – o Buda, a Verdade e os Santos.

As meditações são cinco, sobre amor, piedade, alegria, impureza e serenidade.

Assim a viver ele entra no Caminho e chega à liberação – Nirvana. O Nirvana é a cessação de todos os desejos, o fim da existência, a aniquilação do ser? Mas os livros dizem que podemos conhecer o Nirvana de três maneiras; primeiro, por experiência pessoal (pachchakkha siddhi); segundo, indiretamente, de outra forma, pelo raciocínio e análise (anumeyya siddhi); e da mesma forma, terceiro, pela fé nas declarações daqueles que o experimentaram (saddheyya siddhi). Fé nas declarações daqueles que foram aniquilados?

Pode-se realmente acreditar que milhões de homens e mulheres, de afeições e aspirações normais, vão diante da imagem de Buda, colocam flores diante Dele, dizendo: “Eu me refugio em Ti”, e acreditar que Ele ensinou que a mais alta meta da existência era a aniquilação? Quando durante uma pregação num templo, o monge no seu discurso menciona apenas a palavra Nirvana, e o público emite um grito entusiasmado e extasiado de “Sãdhu! Sadhu!” (Amém! Amém!) — será que eles sentem que o Nirvana é aniquilação?

Estátua do Buda em Dambula, Sri Lanka. Licença Creative Commons

O que, então, é o Nirvana? O que o próprio Buda disse? Primeiro, que ninguém poderia saber em primeira mão quem não vivesse a vida perfeita. Não era uma mera questão de compreensão intelectual; tu podes especular sobre isso, mas tu não poderias conhecê-lo, sem viver a vida. Há experiências possíveis para a alma humana, que nenhum intelecto jamais analisará sem provar sua impossibilidade.

E ainda assim eles são. Como pode alguém não mergulhado nos Upanishads, que não sente o que Platão quis dizer com seu Numenal Mundo das Ideias, ver nada além de uma negação da existência no Nirvana? Qualquer vida que seja supra-pessoal, além da compreensão de nossos sentidos, além de nossa individualidade limitada, torna-se imediatamente irreal ou uma existência inconsciente diluída, não individual e vaga.

Assim falam os Upanishads sobre a única fonte de existência, Brahman.

“Não brilha o sol, nem a lua e as estrelas, nem estes relâmpagos brilham, muito menos este fogo. Quando Ele resplandece, todas as coisas resplandecem após Ele; pelo Seu resplendor resplandece tudo aqui em baixo”. “Nem interiormente consciente, nem exteriormente consciente não consciente ainda em ambos os sentidos; nem ainda recolhido quanto à consciência, nem mesmo consciente, nem ainda inconsciente; o que ninguém pode ver, nem entender nem compreender, vazio de marca distintiva, impensável, definição passada, nada além de autoconsciência, que acaba com tudo, pacífico, benigno e sem segundo – isso os homens pensam como Quarto [O quarto estado é Nirvana; os outros três sendo Jagrat, desperto (físico e astral); Svapna, sono; o plano mental, o mundo celestial; Sushupti, sono profundo, o plano de Buddhi]; Ele é o Ser, é Ele que deve ser conhecido”[9].

Certamente tudo isso parece abstração, mera negação. Mas não é assim para a mente hindu, que está tentando conhecer algo além das limitações de tempo, espaço e causalidade. A intensa realidade d’Aquilo, sua influência na vida diária, é vista em muitos versículos como este: “Sozinho dentro deste universo Ele vem e vai; é Ele quem é o fogo, a água que Ele penetra. Ele e Ele somente conhecendo, um atravessa a morte; nenhum outro caminho existe para seguir”.

É a mesma coisa que é ensinada a Sócrates. É através da Beleza e do amor purificado que o Aquilo deve ser realizado. Assim Platão no simpósio:

“Pois aquele que até agora teve a inteligência do amor e viu todas as coisas belas em ordem e corretamente – ele aproximando-se do fim das coisas amáveis ​​verá um Ser maravilhosamente belo; por causa de quem, na verdade, todos os trabalhos anteriores foram submetidos: Aquele que é desde a eternidade, e não nasce nem perece, nem pode aumentar ou diminuir, nem mudou ou girou ou alterou o mau ou o justo; nem pode essa beleza ser imaginada segundo a forma de rosto ou mãos ou partes do corpo e membros, nem em qualquer forma de fala ou conhecimento, nem em habitar em nada além de si mesmo; nem na besta, nem no homem, nem na terra, nem no céu, nem em qualquer outra criatura; mas a Beleza única e somente, separada e eterna, que, embora todas as outras coisas belas participem dela e cresçam e pereçam, ela mesma sem mudança ou acréscimo ou diminuição permanece para sempre”.

E, finalmente, Gautama Buda fala do Nirvana, o quarto estado de consciência do hinduísmo. Em Udãnam, VIII, 2-3, encontra-se uma definição extremamente filosófica que é a seguinte:

“Existe, ó Irmãos, aquela Morada, onde de fato não há terra, nem água, nem ar; nem o mundo do Infinito-do-Espaço, nem o mundo do Infinito-da-Inteligência, nem o mundo de Nada-Qualquer coisa, nem o mundo de Nem-Cognição-nem-Não-Cognição; nem este mundo, nem o mundo além, e nem o sol nem a lua. Isso eu chamo, ó irmãos, nem vindo, nem indo, nem de pé, nem nascimento, nem morte. Sem fundamento, sem origem, além do pensamento é Isso. A destruição da tristeza realmente é Isso.

“Existe, ó irmãos, aquilo que não nasceu, não se manifestou, não foi criado e não é condicionado. A menos, ó irmãos, não fosse não nascido, não manifestado, não criado e incondicionado, não poderia ser conhecido neste mundo o surgimento do que é nascido, manifestado, criado e condicionado. E visto que existe o não nascido, não manifestado, incriado e incondicionado, portanto é conhecido o surgimento do que é nascido, manifestado, criado e condicionado.

Um dos mais brilhantes historiadores modernos da filosofia, o Prof. Harald Höffding, de Copenhague, descreve verdadeiramente a conceção budista do Nirvana.

“O Nirvana não é um estado de puro nada. É uma forma de existência da qual nenhuma das qualidades apresentadas no fluxo constante da experiência pode ser predicada e que, portanto, nos aparece como nada em comparação com os estados com os quais a existência nos familiarizou. É a libertação de todas as necessidades e tristezas, do ódio e da paixão, do nascimento e da morte. Só pode ser alcançada pela mais alta concentração possível de pensamento e vontade. No conceito místico de Deus [dos místicos alemães], bem como na conceção budista do Nirvana, é precisamente a positividade inesgotável que irrompe em toda forma conceitual e torna toda determinação uma impossibilidade”. [Filosofia da Religião, Seção 43 e Nota 3.]

O que quer que seja o Nirvana, uma coisa pode ser atribuída a ele – não é aniquilação. Quando um monge, após um longo discurso sobre assuntos espirituais, dá no final a bênção tradicional, “Que todos vocês alcancem o Nirvana”, e as pessoas dizem em resposta “Amém, amém”, eles certamente não têm conceção do Nirvana como nada e cessação. de ser. Nas palavras de um santo budista, “Grande Rei, o Nirvana é” (…).


[1] https://dicionario.priberam.org/sublimidade

[2] In Levir – GLOSSÁRIO TEOSÓFICO – Pali; Término equivalente al sánscrito Dharma. – https://www.levir.com.br/query2.php?therm=Dhamma++%28Pali%29

[3] Wikipedia – Refuge in Buddhism: Three Jewels (also known as the Triple Gem or Three Refuges) which are the Buddha, the Dharma and the Sangha. – https://en.wikipedia.org/wiki/Refuge_in_Buddhism

[4] Wikipedia – Refuge in Buddhism: In 1880, Henry Steel Olcott and Helena Blavatsky became the first known Westerners of the modern era to receive the Three Refuges and Five Precepts, which is the ceremony by which one traditionally become Buddhist – https://en.wikipedia.org/wiki/Refuge_in_Buddhism

[5] Não faço ideia onde confirmar a possível tradução para estes termos…

[6] Isaiah 53:11 – King James Bible: “He shall see of the travail of his soul, and shall be satisfied: by his knowledge shall my righteous servant justify many; for he shall bear their iniquities.”  – https://biblehub.com/kjv/isaiah/53-11.htm

Isaías 53:11-12 “Depois do sofrimento de sua alma, ele verá a luz e ficará satisfeito; “ https://www.bibliaon.com/versiculo/isaias_53_11-12/

[7] Sistema_de_castas_na_Índia https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Sistema_de_castas_na_%C3%8Dndia.png

[8] Nome do sistema de castas na Índia

[9]  Mãndûkya Upanishad, traduzido por Mead e Chatterji.

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