Na nossa busca perpétua pelo que se define como sucesso, as nossas mentes e corpos enveredam incessantemente por ocupações superficiais; estar-se ‘ocupado’ parece ser uma escolha natural para saciar as nossas vorazes necessidades materiais e intelectuais. Porém, em algum lugar dentro de nós, permanece um centro superior faminto, sendo palpável um intenso desejo de nos unirmos a algo maior do que aos nossos eus individuais. Apesar da abundância material, do avanço tecnológico e das liberdades irrestritas, é incontestável o imenso vácuo espiritual. É verdade que existem exemplos passageiros onde conseguimos estabelecer uma conexão efémera com o reino espiritual. No entanto, os caminhos para abordar, de uma maneira mais sustentada, essa fugidia dimensão superior que se encontra no fundo, parecem abstratos. Para abordar esse vazio predominante, vale a pena, para aquele que busca, explorar os poucos portais inequívocos que facilitam essas transições.
O filósofo, no seu amor incessante pela sabedoria, esforça-se para transpor o abismo entre a materialidade finita e a transcendentalidade infinita. A sua viagem é caracterizada por uma evolução da consciência. Uma vez que a arte tem sido muitas vezes reconhecida como um veículo de transição para o reino do sublime, é fascinante para um filósofo explorar o caminho do artista para superar esse dualismo existencial.
Qualquer forma de arte pode servir como um canal para invocar este aspeto inato e essencial de nossa existência. Abordamos este aspeto por uma infinidade de nomenclaturas: a dimensão superior, o espiritual, o invisível e infinito, o Divino, Deus, etc. Este artigo investiga uma forma específica de arte – a dança clássica. A Wikipédia define a dança como uma sequência de movimentos humanos propositadamente selecionados, com significado estético e também simbólico. A dança clássica, em particular, enfatiza reviver o clássico – o atemporal ou o centro eterno que nos é intrínseco. Embora a nossa atual perceção da dança por vezes a considere, na pior das hipóteses, uma mera diversão e um meio de expressão ou até mesmo uma catarse, na melhor das hipóteses, muitas vezes deixamos de reconhecer essa forma de arte performática como uma escada potencial para ascender a um reino superior de consciência.
O aspeto meditativo da dança clássica é universalmente reconhecido. Nesta forma de arte, estar centrado é essencial e a atenção do bailarino não deixa margem para a menor incoerência. É fundamental a atenção simultânea a várias capacidades: os gestos, as expressões, as posturas, os movimentos, o ritmo e o recital musical. A atenção plena é uma consequência colossal ao conjurar uma sinergia meticulosa entre os vários elementos que constituem a dança. Desta forma, a prática da dança clássica também pode oferecer um antídoto para as distrações dispersas nas nossas vidas.
A dança também envolve vencer as inibições, a ansiedade com a possibilidade de ser rejeitado, convidando o dançarino a realinhar seu ponto de vista de fora para dentro. Enquanto o palco fornece uma plataforma preliminar ao dançarino para combater a timidez, servindo como um ímpeto para o impulsionar para fora de sua zona de conforto, é preciso ser cauteloso para não depender tanto dele. O verdadeiro propósito da dança não é apelar à atenção de quem a vê, embora esta seja uma consequência natural. Em vez disso, o dançarino clássico aspira focar a atenção para dentro tão intensamente, que pode capacitá-lo a canalizar um estado elevado de consciência para o impermanente. Assim, um verdadeiro dançarino é movido pelo dar e não pelo receber.
Atingir tal altitude de consciência e tranquilo equilíbrio da mente e do corpo não é uma metamorfose que ocorre da noite para o dia. Envolve anos de prática paciente e persistente, superando a monotonia da repetição, a fadiga aguda, as vicissitudes do humor e a tentação das distrações que oferecem gratificação instantânea. Como filósofos e buscadores da verdade, também aprendemos a desafiar as nossas zonas de conforto em todos os aspetos das nossas vidas, a tentar evitar distrações e a estar constantemente atentos às vozes traiçoeiras que emergem da personalidade e que mascaram o nosso potencial superior.
Na verdade, para além da superficial dicotomia entre os caminhos de um dançarino e de um filósofo, existe uma aliteração poética entre o propósito último da dança e a filosofia. Segundo Platão, o artista é também um filósofo; ambos buscam a veracidade final, cada um usando um aparelho diferente. A dança clássica tenta alcançar o divino por meio do arquétipo da beleza, enquanto o filósofo busca a mesma dimensão transcendental por meio de uma jornada investigativa motivada pelo amor à verdade.
Esta hipótese é corroborada pela importância dos rituais de danças dos templos, costumeiros na Índia antiga, que representam a reverência ao divino. Em maio passado, a fraternidade dos filósofos em Nova Acrópole (Mumbai, Índia) teve a oportunidade de receber e testemunhar esse lado sublime da dança clássica indiana num encantador recital de dança Kuchipudi pela eminente Vaidehi Kulkarni.
Vaidehi apresentou o Kuchipudi como uma das oito principais formas de dança clássica indiana, desenvolvida sobre os fundamentos do Natya Shastra de Bharata Muni, o Santo Graal das artes performáticas indianas. As suas raízes remontam à vila de Kanchelapuram, no distrito de Krishna, em Andhra Pradesh, no sul da Índia. A princípio realizada exclusivamente por homens, surgiu como uma oferenda sagrada de veneração às divindades nos templos.
Aludindo aos encantos únicos do Kuchipudi, Vaidehi enfatizou que a arte do drama é fundamental para esta forma de dança. Os três principais constituintes do Kuchipudi são:
Nritta – demonstra a técnica do artista a conter uma fusão rítmica e sinfónica de ritmo, movimento e coordenação.
Nritya – envolve rotinas de dança mais lentas repletas de emoções evocadas por meio de expressões faciais e gestos com as mãos.
Natya – é a encenação na qual os movimentos de dança estabelecem personagens e retratam uma narrativa mitológica.
Além disso, os gestos, as expressões faciais, a melodiosa música carnática, juntamente com os ornamentos e trajes, são elementos integrais que se unem em meticulosa sincronização. Estes unem-se em movimentos complexos, como saltos altos e curvas rápidas que são características do Kuchipudi. A sincronização labial com a música traz a narrativa viva para o público. As sequências geralmente começam com uma invocação divina e compreendem subsequências de exibição de dança técnica e representações de narrativas mitológicas.
Um artista a solo interpreta muitas vezes várias personagens no Kuchipudi e é fundamental que ele/ela atue de forma a dar vida a cada parte desempenhada. Isto alude subtilmente aos vários papéis que o ser humano desempenha na vida – como o de filho, cônjuge, pai, mãe, profissional, cidadão, entre outros. Talvez esta seja uma referência velada na qual nos possamos inspirar, incorporando os nossos papéis no acto da vida com plenitude, de maneira aprimorada e equilibrada.
À medida que Vaidehi representava a mitologia através da dança, as barreiras linguísticas eram eliminadas pelas suas expressões, gestos, posturas e movimentos. Foi fascinante perceber que muitos jovens membros do público que não tiveram nenhum contato anterior com a dança clássica, expressaram o seu encantamento com a apresentação.
A notável jornada de Vaidehi começou na tenra idade de cinco anos, quando ela experimentou o Kathak e o Bharatanatyam, até que descobriu a sua verdadeira vocação – o Kuchipudi. Aos dez anos, em visita a Chennai, um conhecido da família acompanhou-a à renomada Academia de Arte de Kuchipudi, onde a jovem Vaidehi “se apaixonou” por esta forma de dança. Com a sua mãe e irmã, ela mudou-se para Chennai para procurar este amor intenso, embora recém-descoberto. Vindo de Nashik (Maharashtra, Índia), no início ela lutou com a linguagem e com um subtil preconceito, na sua análise desta forma de dança do sul da Índia. Apesar do seu compromisso absoluto, este foi enormemente desafiador para Vaidehi, treinada em Kathak e Bharatnatyam, adaptar-se ao Kuchipudi, chegando a um ponto, em cerca de um ano da sua estadia, de ela considerar desistir desta aventura audaciosa. Esta conjuntura marcou um ponto de viragem; uma energia inexplicável dentro dela inverteu a sua relação com esta forma de dança.
Ela lembrou que, milagrosamente, quase da noite para o dia, começou a sentir-se à vontade com o Kuchipudi e houve uma transformação percetível na sua habilidade com ele. Era como se a essência da dança tivesse sido finalmente absorvida por ela. Não havia como voltar atrás para esta criança precoce e a sua determinação e devoção conseguiram superar os muitos obstáculos ao longo do caminho.
Até hoje, a talentosa dançarina não está dissuadida de buscar mais aperfeiçoamentos e ela visita com frequência o seu professor em Bengaluru, no seu esforço por refinar ainda mais a sua destreza na dança. A sua jornada é motivadora para o filósofo ou filósofa que busca a verdade, superando contratempos e dispersando a complacência, independentemente da magnitude dos avanços obtidos ao longo do caminho.
Anos de disciplina árdua, estima inabalável pelos seus professores, determinação e sacrifícios dos seus pais encontram expressão gratificante nas apresentações de Vaidehi hoje. Ela não distingue mais a dança de outros aspectos da sua vida e explica que a dança penetrou a sua vida tão profundamente e a sua entrega a esta forma de arte é tão completa, que a dança se tornou na sua vida. Ela diz, literalmente, que dança os seus desafios e que isto é uma fonte de força, um canal de catarse, bem como um meio de comunicação com o público.
Kuchipudi transformou a vida de Vaidehi e agora ela espera retribuir a arte que a ajudou a evoluir enquanto ser humano. Perturba-a o facto de que o Kuchipudi não seja tão popular quanto os seus primos ilustres – o Bharatnatyam e o Kathak, e que muitos falham em reconhecê-lo como uma forma distinta de arte. Ao lado de seu professor Smt. Manju Bhargavi de Bengaluru, ela pretende contribuir para a sua divulgação, para expandir o seu reconhecimento, estabelecendo institutos de Kuchipudi que possam aderir aos princípios do antigo guru-shishya parampara, a tradição mestre-discípulo. Vaidehi exorta a juventude da atualidade ao orgulhar-se da herança indiana e ao reviver as antigas formas de arte.
Os céticos entre nós podem descartar a dança clássica como sendo arcaica. Os conhecedores do assunto podem deliciar-se com a sua dimensão visual exotérica. Outros que são pedantes podem maravilhar-se com a sua sofisticação técnica. Este artigo é um esforço humilde para convidar o leitor a desvendar a dança clássica, para além do aparente. O clássico implica atemporalidade e, portanto, a dança clássica é tão potente hoje quanto era há mil anos para invocar a essência espiritual que está dentro de nós, se alguém estiver disposto a mergulhar profundamente nela. Platão fez uma citação famosa: “Homem, tu és Deus, mas esqueceste-te”, referindo-se à memória do espírito atemporal que reside em nós e que nos une com a inteligência cósmica eterna e omnisciente. A dança clássica é potencialmente um meio para reviver essa memória indescritível. Quando a narrativa da música, a intenção e atenção do dançarino e a acuidade da habilidade confluem cerimoniosamente com a atitude certa do observador no momento oportuno – algo mágico pode acontecer. Talvez essa magia seja a reminiscência da alma.
As tradições esotéricas sugerem que todos nós temos essa centelha inata. Cada um pode alimentar a sua chama de maneira diferente. Não existe uma panaceia única para o vazio espiritual que experimentamos intermitentemente, mas a dança clássica merece ser explorada em nome do reacendimento da luz sagrada, a memória da alma, intrínseca à nossa existência.