A conquista de Draupadi

1 A Escolha de Draupadi. Public Domain

Uma das cenas mais emotivas do Mahabharata é quando o herói Arjuna conquista, numa competição entre Kshatryas, a princesa Draupadi, a “nascida do fogo”. Está narrada no Adi Parva, no livro 12, chamado swayambara, que significa, precisamente “escolha do marido”. Os reis foram convocados pelo rei Panchala para desposar a sua filha. Só aquele que consiga usar o arco mágico e lançar com êxito cinco flechas ao olho de um peixe que se move numa roda no alto, terá esse direito. Apesar de no Mahabharata não se especificar, pelo menos não neste capítulo, o aspirante deve fazê-lo sem olhar diretamente para o dito artificio, mas apenas para uma imagem refletida num espelho de água.

Descreve-se como todos os reis são humilhados na tarefa, incapazes sequer de armar o arco prodigioso, e caem, de joelhos e exaustos do esforço. O único que consegue é Karna, filho do Sol (Surya), inimigo, e sem sabê-lo, irmão dos 5 Pandavas, mas a “eternamente jovem” rejeita-o por ser de uma casta inferior, e ele pousa o arco envergonhado. 

Depois de Karna, o arqueiro mais excelso da época, mais ninguém ousa tentar.

Depois de os Kurus tentarem assassinar os Pandava no palácio de Laca, queimando-os, estes fugiram, fazendo crer aos seus inimigos que estavam mortos. Vagueavam pelo bosque, juntos, disfarçados de brâmanes. É nesta condição, e esgotadas as tentativas dos Kchatryas, que Arjuna dá um passo em frente e pede permissão para tentar. 

Isso produz comoção nos reis, pois se eles não o haviam conseguido, como um brâmane podia ter a audácia de tentá-lo?

Exílio dos cinco Pandavas, acompanhados por Draupadi. Wikimedia Commons

Arjuna prepara o arco num piscar de olhos e lança certeiras as 5 flechas no olho do peixe, que cai ao chão.

Os reis, irritados lançam-se sobre o rei anfitrião, porque é ofensivo fazê-lo sobre um brâmane, mas Arjuna e Bhima defendem-no como encarnações do Deus da Guerra, até que Krishna, que sabia quem eram, mas não o disse, acalma a multidão.

A cena, no Mahabharata dura umas 3 páginas, e na última versão televisiva, de 2013 e 267 capítulos, mais de meia hora, com uma grande tensão dramática.

De grande importância terá de ser o simbolismo numa cena tão chamativa. E de um simbolismo polivalente. 

De certa perspetiva, talvez, sendo a belíssima Draupadi a Luz Espiritual, Budhi, e daí o nome de Krishná, e Arjuna a consciência humana – aprisionada entre a matéria e o espírito – a conquista de Draupadi significa a conquista da Mente Superior (Manas, ou seja, a Mente iluminada pela Luz Espiritual, como no termo budista Bodhichitta). Draupadi é a virgem nascida do fogo, e converte-se no sentido da vida e da alma dos 5 Pandavas. Casa-se com os 5, que atuam sempre em perfeita harmonia, como os dedos de uma mão.

Segundo esta perspetiva o PEIXE representa ao planeta Vénus, a essência da Beleza e da Mente para percebê-la, e do Amor que nela desperta. Na estância VII, sloka 5 da Cosmogénese de H. P. Blavatsky (possivelmente os textos de Kalachakra) diz-se:

“Ela – a chispa de Eternidade na Alma Humana – viaja através dos Sete Mundos de Maya. Detém-se no primeiro e é um Metal e uma Pedra; pára no segundo e será convertido numa Planta; a Planta passa por sete modificações e torna-se um Animal Sagrado. Dos atributos combinados de todos eles, surge Manu, o Pensador. Quem o forma? As sete vidas e a vida Una. Quem o completa? O Quíntuplo Lha. E quem aperfeiçoa o último corpo? Peixe, Pecado e Soma…”

PEIXE é Vénus, que rege a mente pura e iluminada. PECADO é a condição da alma encarnada, ou seja, a mente impura, o Ahamkara, a raiz do egoísmo. SOMA é a condição lunar ou material da personalidade, incluindo todos seus elementos físicos, vitais e psíquicos.

Como um peixe que cintila no mar, também o faz o planeta Vénus no mar sem margens do espaço. Recordemos também que na Astrologia, Vénus esta exaltado em Peixes, o signo da dissolução e do acesso ao espiritual. Fazer com que o Peixe baixe à Terra é um símbolo semelhante à descida do Fogo de Prometeu, ou melhor, a conquista da condição divina que permite a Hércules libertar o Titã encarcerado. As cinco flechas podem ser a vitória da vontade e o pensamento sobre os cinco sentidos, todos unificados na mente. O deus Kama, do Amor, é o das flechas floridas. O que conquista tal condição é tanto sábio como guerreiro, como o próprio Arjuna, que sendo Kchatrya leva as vestes de um brâmane.

Ter que apontar a imagem do peixe no espelho, é também muito sugestivo, pois é no espelho de nossa mente limitada donde se reflete este Fogo espiritual que representa o Peixe, e só perfeitamente calmo pode ser útil ao caçador de Sonhos impossíveis. Assim como refere a mesma H. P. Blavatsky:

“A perceção de todo o ato exterior pode ser, como já demonstramos, na melhor das hipóteses, só uma verdade relativa; um raio da verdade absoluta pode refletir-se unicamente no espelho imaculado de sua própria chama, a nossa consciência Espiritual superior.”

Draupadi humilhada na corte de Virata. Dominio Público

Mas noutra chave do significado é exatamente o contrário. Draupadi, vestida geralmente de vermelho, e como o fogo, é a “vida encarnada” da personalidade.  É por ela e pela necessidade de vingar as ofensas nelas vertidas que atua o Karma, ou seja, que começa a grande guerra que vai destruir quase toda a vida no kurukshetra, o campo de batalha. “Eternamente jovem” porque a vida material é realmente assim, ainda que os veículos nela sejam cada vez mais ineficazes. Associada à atividade dos sentidos, e isto seria o que significaria as 5 flechas, o desejo de existir que liga a mente ao reino da necessidade. Vida imperecível a qual nunca veremos na sua verdadeira nudez, e a quem ofende uma e outra vez o jogo de dados que simboliza o destino. Por ela a mente – representada pelos cinco Pandavas – entra na vida para redimir-se e continuar a aprendizagem com base na experiência e na purificação.

Neste caso o peixe que morre com os seus olhos penetrados por cinco flechas, e cai, sobre a terra, é a alma divina que deixa de agitar-se livre num mar de beleza e mistério e sucumbe vítima dos cinco sentidos. E nesta versão, talvez como no original do Mahabharata, não é olhando no espelho, mas diretamente tal como é ferido pelas flechas de Arjuna, pela necessidade de Ser que força a evolução da alma humana, e que faz com que caia como a chuva para abençoar a terra com os seus frutos.

Morte de Draupadi quando os 5 Pandavas ascendem à montanha, seguidos pelo deus Dharma sob a forma de um cão. Wikimedia Commons

Deixe um comentário