A ciência no espaço – O Vaastushastra

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Como aluno de Sri V Ganapati Sthapati, e depois da sua associação à Escola de Arquitetura da Universidade de Madras, durante mais de 30 anos, Sashikala Ananth tem vindo a investigar a ciência clássica indiana da arquitetura, conhecida como Vaastu, combinando de igual forma o conhecimento linguístico e a aplicação prática no campo. Ela relatou a sua experiência nos seus livros, os quais incluem The Penguin Guide to Vaastu e o Pocket Book of Vaastu. O que se segue é uma síntese da conversa sobre este estilo antigo que o Círculo Cultural da Nova Acrópole manteve com Sashikala ji em maio de 2021.

O meu encontro com o Vaastushastra

Quando tínhamos 20 anos, o meu marido, eu e cerca de 15 a 18 dos nossos contemporâneos, fomos profundamente influenciados por Shri Dharampal, um dos maiores sociólogos dos últimos tempos. Ele inspirou-nos a dedicar uma década da nossa vida ao estudo das tradições indianas, trazendo-as para o que se considera convencional. Ele disse-nos: “Ou correm atrás da cauda do Ocidental, ou voltam ao seu próprio passado e tornam-se mestres.” Nós escolhemos a segunda opção. Tivemos que nos dar ao trabalho de aprender a sabedoria tradicional com um especialista para que não se perdesse ou fosse manipulada comercialmente.

Historicamente, o Vaastushastra remonta ao Período de Mohenjo Daro e Harappa, que se estima datar de 3000 a 4000 a.C. Tal como acontece com toda a sabedoria tradicional, a prática surgiu primeiro, e o próprio texto apareceu muito mais tarde. Reconectar-se ao Vaastushastra na sua forma original é muito importante, porque ao contrário de outros temas tradicionais, como o Ayurveda e o Yoga, o Vaastu foi esquecido. Depois de eu ir estudar com Ganapati Sthapati, em 1982, descobri que nenhuma faculdade de arquitetura na Índia ensina o Vaastushastra, embora seja o mais antigo sistema vivo de arquitetura no mundo. Assim, foi uma grande responsabilidade estudá-lo e torná-lo disponível para a mente contemporânea. Fui a primeira mulher a aprendê-lo, e nos últimos 15 anos, pude ensiná-lo a muitos estudantes de arquitetura.

O conceito do Vastu Purusha.
Imagem de Oracle125 em Wikipedi (CC BY-SA 3.0)

Os Vishvakarmas

Os praticantes tradicionais do Vaastushastra são chamados de Vishvakarma. A comunidade é dividida em cinco categorias:

Manu – produzem manualmente ferramentas, armas, implementos agrícolas e utensílios de cozinha.

Maya – são carpinteiros, construtores de barcos e os Rathakara, e ligados ao movimento de veículos.

Tvastar – trabalham com cobre e bronze, e produzem utensílios e recipientes.

Shilpi – são pedreiros e escultores.

Visvajna – são ourives e artesãos de joalharia, bem como de ornamentos cerimoniais usados nos templos.

Ao mesmo tempo, estes cinco subgrupos cuidaram do design de todo o ambiente em todo o subcontinente. No período colonial, no entanto, com a educação ocidental, eles foram privados da sua licença de construção. Assim, nos últimos 200-300 anos, o sistema tradicional foi posto de lado, para ser usado apenas na construção de lugares religiosos.

Conexão entre Disciplinas

Qualquer assunto tradicional está ligado a outro. As disciplinas reúnem práticas internas e externas. O Vaastu representa a relação entre o objeto e o espaço. O Yoga relaciona-se com aquilo que lida com o eu, o espaço interior e a capacidade de resposta ao espaço exterior. O Ayurveda lida com o bem-estar pessoal e a harmonia, a alimentação e a cura. Enquanto os três não se juntarem e não convergirem, não podemos ter equilíbrio ou harmonia, nem no eu, nem no ambiente onde habitamos.

Essa natureza interconectada da realidade foi incluída, portanto, na metodologia de ensino dos Vishvakarma. O que ensinou o Parampara Shiksha aos aprendizes? Eles tiveram que estudar todos os assuntos relacionados: para entender o Vedanta, recitar os Vedas, trabalhar com o dançarino, o músico – para entender o Rasa dessas questões. Rasanubhava significa poder experimentar com enorme prazer, de modo a ficar com essa boa sensação durante um longo período de tempo. E o desenvolvimento de habilidades incluiu desenho, escultura, etc.

Eles sentiram o material. Eles tocaram a pedra, o tijolo, a argamassa, a terra, a madeira, o metal e assim por diante. Eles tiveram que estudar o Vaastu Shilpa Shastra. Normalmente, eles trabalhavam no pátio durante o dia, e estudavam com o mestre à noite.

Fundamentos do Vaastushastra

Bhumi Prathama Vastu

Bhumi Prathama Vaastu

A Terra é o primeiro Objeto

A Terra é também o primeiro Espaço

O Vaastushastra é, também, conhecido como o Vaastu Shilpa Shastra, onde Vaastu se refere à forma construída e Shilpa se refere aos elementos de beleza individuais, como a escultura ou outra obra de arte ornamental. Existem duas palavras críticas contidas no Vaastushastra: Vastu e Vaastu. Vastu pode significar residir ou localizar um objeto. Quando esse objeto é colocado na minha palma da mão, a palma da mão torna-se no Vaastu, o espaço bi- ou tridimensional. Juntos, eles combinam-se para formar o edifício exterior, ou o corpo de qualquer objeto que ocupe o espaço. Assim, qualquer objeto, colocado num espaço, torna-se num Vastu e num Vaastu. Qualquer objeto ocupa um espaço e tem uma relação com esse espaço. Cada objeto é fechado num envelope, o qual, por sua vez, se torna num objeto fechado num envelope.

O desenho da grade 8×8 (64) Manduka Vastu Purusha Mandala para templos hindus.
É um dos 32 padrões de grade Vastu Purusha Mandala descritos nos Vastu sastras.
Trabalho de Mark.muesse em Wikipedia (CC BY-SA 4.0)

Uma perspetiva holística

Qual é a natureza do terreno com a qual nos relacionamos quando construímos algo sobre ele? Ou quando cultivamos algo nele, quando estamos nele, quando andamos descalços na relva do jardim? O que é que os nossos corpos colhem? O que é que é escolhido pela semente que se torna numa árvore; a energia invisível essencial que percorre a terra, capaz de criar, sustentar, e alimentar a vida? Quando construímos algo com algum respeito e responsabilidade perante as energias que estão na terra, podemos criar algo que seja capaz de oferecer bem-estar e prosperidade ao utilizador.

Outro aspeto importante do Vaastushastra é o Tala. É a mesma palavra na música e na dança, assim como na escultura e na arquitetura. Tala significa ritmo, ordem. Qualquer coisa que seja rítmica na natureza é capaz de estar harmonicamente em estado de equilíbrio. Na música, chama-se a isso relação entre som e silêncio. No âmbito da arquitetura, trata-se da relação entre forma e espaço, luz e escuridão.

A capacidade de misturar várias experiências polarizadas de forma ordenada é o Taala. No campo da arquitetura, é muito crítico.

Depois, há o Bhanga, que significa a mudança ou flexão no corpo. Uma postura ereta é conhecida como Samapaada Sthaanakam, com uma linha reta que vai do topo da cabeça até à base dos pés. Mas quando o corpo inicia o movimento através da dança, tudo é posicionado matematicamente. O exemplo mais clássico é o da imagem do Senhor Nataraja, em que todas as partes do corpo do Senhor, começando pela figura distorcida que O apresenta a dançar (Avidya, uma forma de equívoco, conhecimento errado), estão em proporção. O eixo central que vai do topo da cabeça até a base dos pés afasta-se do corpo.

A componente modular rítmica usada na arquitetura é chamada de Padavinyaasa. Por exemplo, um templo é disposto de uma forma modular. A unidade básica é o Garbhagruha, o santuário. Tudo o resto é disposto respeitando os múltiplos do tamanho do santuário, incluindo os espaços abertos. É por isso que quando se anda por uma cidade-templo, há uma sensação de tranquilidade interior e equilíbrio interior; o que se vê é muito rítmico e afeta a mente de uma maneira extremamente bela.

O Templo Kailash na Caverna 16 das Cavernas de Ellora é a maior escavação monolítica do mundo.
Trabalho de World8115 em Wikipedia (CC BY-SA 3.0).

O templo Kailasa Natha é uma construção extraordinária porque foi esculpida de cima para baixo, a partir de uma montanha rochosa, exigindo uma habilidade inacreditável. As pessoas sempre questionaram o local para onde foi levada a pedra que foi removido do afloramento. Não parece haver qualquer evidência de que tenha sido levada para algum lugar. Um trabalho com esta qualidade só pode ser realizado por artesãos treinados que são capazes de manter as razões e proporções nas suas mentes, de uma forma incorporada, porque eles não produziam modelos em tamanho real. Isso também significa que a equipa trabalhou de uma forma extremamente eficiente. Aquele que cortava, aquele que carregava, aquele que moldava as ferramentas, aquele que auxiliava ou procedia às marcações, tinha que ter trabalhado num ambiente e de uma forma muito sincronizados. Teria havido cerca de 1000 trabalhadores no local. Alimentá-los, alojá-los, gerir os sistemas, tudo isso deve ter sido um feito notável.

O impacto do Vaastushastra

O Vaastushastra teve uma forte influência no puja, um ritual de adoração. Qualquer imagem destinada ao santuário, todas as divindades colocadas no templo, as suas proporções e as proporções criadas no templo, a caminhada sagrada … tudo isso é feito para criar uma experiência interior para o observador. Quando se atravessa o Gopuram (o caminho de entrada), vê-se o Dhvajasthambham, o mastro da bandeira, que representa os chakras no corpo.

O devoto vai ao Dhvajasthambham, toca na base, que representa o Muladhaara, o chakra raiz, e diz ao divino: “Que seja desperto o meu Muladhaara para que eu possa atingir o meu estado espiritual superior.” E então caminha-se em redor do templo, sente-se as coisas, cheira-se, prova-se a água que é dada, ouve-se o canto e, finalmente, quando se chega ao Garbhagruha, no piscar da luz de uma lâmpada, é possível vivenciar uma experiência interior, um Rasanubhava dentro de si mesmo.

Nesse momento, depois de ter concluído o Pradakshina (circumambulação) em redor do templo, faz-se um Atmapradakshina (circumambulação em torno de si mesmo), porque dentro de nós está o Jivatma, sendo despertado pela ressonância divina. Então, agradecemos e voltamo-nos para o nosso interior. E depois a pessoa retorna ao Dhvajasthambham, para oferecer o Namaskara (ritual de reverência). Isso faz parte do ritual e o templo é projetado para acentuá-lo.

Da mesma forma, existe o Yantra, ou Mandala no budismo. Um Yantra é uma gravura geométrica bidimensional numa placa de metal, com uma precisão matemática e capaz de evocar certas energias dentro de si próprio e do espaço.

Além disso, qualquer casa de uma aldeia típica do sul da Índia sempre abriga um Tulasi (manjericão sagrado) no seu centro. Todas as manhãs, ao nascer do sol, depois de desenhar o Kolam (desenhos decorativos feitos com pasta de farinha de arroz) no exterior, a dona da casa rega o Tulasi, remove algumas das suas folhas, e coloca na água potável da família, ou na comida – sendo ambos aceitáveis. Só depois ela liga a luz para iniciar a sua rotina diária. Essa atitude de se relacionar com a terra e as plantas que são boas para o solo, tudo isso faz parte do Vaastushastra.

Vaastu para arranha-céus urbanos

No momento em que nos afastamos da Terra, a conexão natural é perdida. Isso leva a certas formas de ansiedade, insónia, stresse, problemas digestivos e assim por diante. Não podemos mudar a realidade dos arranha-céus nas cidades. Mas através de um processo chamado Chikitsa Vaastu, pode-se recriar uma experiência da Terra.

Plano de Jawahar Kala Kendra, inspirado no plano original da cidade de Jaipur, composto por nove quadrados com a praça central deixada aberta.
Trabalho de Quietsong em Wikipedia (CC BY-SA 3.0).

Os elementos internos e externos

Cada aspeto da sabedoria tradicional tem dois lados: existe o lado racional, e existe o lado místico ou espiritual. Místico significa a capacidade de olhar as coisas de uma maneira abstrata. O primeiro correlaciona-se com o aspeto linear, lógico, cerebral, enquanto o segundo se correlaciona com um sistema cíclico, tal como a via do Kala, ou tempo, é vista como o Dharma Sanatana. Por um lado, temos a necessidade de evidências tangíveis: qualquer coisa que não seja fisicamente visível, não podemos ver. Temos ainda o lado emocional impulsivo que diz, eu sinto, logo sei que existe. Depois existe o nosso lado que diz, o que é comum é real, o que é extraordinário é uma mentira. Mas também há o aspeto da nossa própria experiência, ou Anubhava, que diz que o extraordinário faz parte da nossa vida. Mesmo enquanto o comum vai acontecendo, o extraordinário é capaz de irromper.

Por um lado, os parâmetros devem ser claros. Mas os parâmetros também podem ser enganosos, como todos sabemos. A ambiguidade é, portanto, uma parte de toda a experiência. Então, esses dois aspetos, tais como os dois pratos de uma balança, existem simultaneamente. Existe uma combinação ou mistura de ambos.

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