A Constituição do Ser Humano
Para que seja possível entender a guerra desde um ponto de vista filosófico, primeiro será necessário compreender um pouco melhor o ser humano e a sua constituição. Segundo a tradição hindu, a mesma que nos legou o tratado do Mahabharata onde encontramos a Bhagavad Gita, temos o homem constituído por sete elementos divididos em dois grupos, conforme pode ser visto na imagem, sendo as duas principais divisões, ou partes, aquilo a que chamamos aqui de indivíduo e de personalidade, mas também poderíamos chamara estas partes distintas de espírito e de matéria.
O ponto interessante aqui, e do qual cabe o destaque, é relativo à dualidade natural e intrínseca presente neste esquema, uma vez que estes elementos, apesar de atuarem de maneira conjunta, são de naturezas diferentes, ambos constituem e tornam o ser humano num ser humano. No entanto, possuem naturezas distintas provendo diferentes aspectos que, ao atuarem em conjunto, nos revelam uma criatura extremamente complexa com uma quantidade gigantesca de potencialidades, mas, também, de lacunas que precisam de ser preenchidas para que seja possível o desenvolvimento de harmonia suficiente para que a vida deste ser se manifeste na sua plenitude.
Como foi dito anteriormente, estes dois elementos que constituem o ser humano possuem naturezas distintas, porém, além das distintas naturezas, possuem necessidades e interesses específicos, fazendo assim com que cada um deles tenda para aquilo que tem maior afinidade e necessidade.
Ao passo que o espírito é imortal, eterno e tende para todos aqueles elementos que conhecemos e que assumimos como sendo transcendentes e de valor atemporal, a parte da personalidade é de natureza temporal e material, pendendo para a satisfação de questões mundanas e passageiras, que têm tanta importância quanto o desenvolvimento espiritual, ainda mais se considerarmos que vivemos num mundo concreto e que a vida também tem de chegar a expressar-se nos elementos mais concretos.
Esta dinâmica gera, então, forças opostas em direções contrárias que precisam de ser harmonizadas para que a vida ganhe um rumo adequado. Podemos entender o nosso mundo como um mundo dual e, da mesma forma que temos este jogo de opostos no ser humano, é possível identificar o mesmo padrão na natureza ao nosso redor: temos o dia e a noite, o quente e o frio, o positivo e negativo, todos eles opostos complementares que, se coordenados de maneira correta, geram a necessária harmonia por oposição que proporciona o funcionamento adequado da vida, que precisa destes dois opostos a funcionar harmoniosamente, para que possa expressar-se na sua totalidade.
Tendo estas considerações em linha de conta e sabendo que estes elementos possuem naturezas e necessidades distintas, podemos dizer, portanto, que o conflito, a disputa pela energia necessária para que seja possível realizar ações de uma ou outra natureza é inevitável, da mesma forma que constantemente lutamos contra a força da gravidade para fazer seja lá o que for, ou que o nosso corpo se recupera constantemente da oxidação que ocorre em detrimento do processo de respiração. O grande ponto aqui não é tanto o conflito em si, pois trata-se de algo que vai acontecer e que acontece constantemente, a grande questão está em como iremos lidar com este conflito.
Como estamos a tratar de um elemento específico a que chamamos de guerra, é preciso falar sobre aqueles que são os especialistas no assunto, da mesma forma que quando falamos de saúde falamos de médicos, aqueles que são os especializados em manter e promover a saúde. Portanto, quando falamos do tema da guerra precisamos de falar dos guerreiros, daqueles com qualidades e características específicas que permitem lidar com este elemento de maneira adequada e correta.
Através de uma forma de vida e de ver o mundo, próprios de um guerreiro que sabe que o desenvolvimento da virtude e da defesa do que é sagrado e atemporal implica um sacrifício de elementos materiais passageiros.
A Forma de Vida do Guerreiro
Esta forma de vida própria dos guerreiros implica o conhecimento e a aceitação de alguns preceitos que ditam e que estabelecem como é que o guerreiro vive a sua vida. Para um guerreiro a VIDA tem um sentido, não acontece por mero acaso nem passa, simplesmente, sem definição ou sem um objetivo final comum a todos os seres que a integram. Desta forma, um guerreiro entende que existe uma LEI UNIVERSAL que rege e coordena todo o processo de vida de todos os seres que compõem aquilo a que chamamos de universo. Desde as galáxias e sistemas solares até aos seres humanos, tudo está sujeito a esta lei que rege a forma como tudo acontece.
Portanto, a VIDA tem um sentido e uma LEI que a rege e governa, isto é, o que poderíamos chamar de Destino ou como encontramos na tradição oriental, Dharman, o guerreiro aceita isso e sabe que a sua escolha está em como irá passar pela experiência a que chamamos de VIDA. Tendo basicamente duas opções, passar por esta VIDA de maneira automática e inconsciente ou obedecer conscientemente a esta lei fazendo aquilo que é próprio da sua natureza, cumprindo, assim, o seu Destino e vivendo de acordo com aquilo que os mesmos sábios do oriente chamam de Karma. A primeira das opções não implica grandes esforços, já a segunda, só será possível, garantidamente, com esforço e dedicação constante.
Para que seja possível ao guerreiro cumprir o seu Karma, ele precisa aceitar esta lei universal e deve comprometer-se em cumprir o seu papel, mas, para tanto, ele deve percorrer uma jornada de autoconhecimento que lhe permita entender o porquê de agir, ou melhor dito, no caso do guerreiro, porque lutar.
O guerreiro tem clara, no seu coração, a imortalidade do espírito. Ele sabe que a sua parte material é perecível e que em determinado momento irá passar pela fase desta experiência (VIDA) a que chamamos de morte. No entanto, concebe que o espírito é imortal e que devido à necessidade de se desenvolver e de aprender constantemente com as suas experiências, vai passar inúmeras vezes por ela, com diferentes expressões materiais, a fim de se desenvolver cada vez mais a cada vez que passa pela parte da experiência (VIDA) a que chamamos de Vida.
Esta forma de vida consiste, portanto, no consciente direcionar da nossa energia para os elementos superiores ou espirituais, fazendo com que, pouco a pouco, os princípios superiores do espírito conduzam às forças inferiores da matéria em direção à compreensão do sentido próprio da VIDA, dando-nos assim a capacidade de nos mantermos fiéis a esta grande lei universal que, em última instância, nos proporciona a capacidade de sermos fiéis a nós próprios e àquilo que concebemos como sendo o bom, o belo, o justo e o verdadeiro.
Podemos então concluir que qualquer um, homem ou mulher, independente de nível social, credo, raça, etc., que viva a sua vida de forma consciente, desenvolvendo todo o seu potencial através da ação própria da sua natureza, por mais humilde que possa ser, poderá ser um guerreiro e viver a sua vida de acordo com estes princípios sempre que busque, constantemente, aplicar a forma de vida do guerreiro.
Por que Lutar?
Esta questão é de extrema importância e relevância para aqueles que decidem viver a sua vida como guerreiros, uma vez que se aceita que a VIDA tem um sentido e uma lei que rege o seu funcionamento. É preciso desenvolver consciência suficiente de quem somos para que seja possível compreender o nosso lugar nessa lei universal e, uma vez compreendido qual seria esse lugar, viver de acordo com ele, cumprindo o nosso dever na VIDA.
Na Bhagavad Gita, temos uma boa indicação dada por Krishna a Arjuna, o mestre explica ao seu discípulo que a VIDA é movimento e que todo o universo está inserido nesta dinâmica, cada parte cumprindo o seu papel e seguindo o fluxo da VIDA conforme o esperado e, como parte integrante desta VIDA, o guerreiro também deve agir. E assim como todos os outros seres, de acordo com a sua própria natureza a fim de cumprir o seu Karma e ocupar o seu lugar no mundo e vivendo essa experiência, ser capaz de desenvolver todas as suas potencialidades.
Como foi já mencionado anteriormente, o guerreiro é o especialista na guerra, por karma ele nasceu para isso, para estar inserido neste meio. Para aqueles que têm essa natureza guerreira, a guerra é natural e faz parte do seu processo de desenvolvimento além de possuir um entendimento daquilo que é realmente importante, ou seja, da parte espiritual que compõe o ser humano, que é imortal. Sabendo isto, o guerreiro não entra em conflitos internos quando chega o momento de atuar na guerra que, invariavelmente, leva à destruição de formas materiais.
Respondendo então à questão, o guerreiro luta porque é seu dever lutar, sempre que o seu ideal, os valores da beleza, da justiça, da bondade e da verdade estão em jogo os guerreiros levantam-se e dão um passo em frente na defesa dos ideais atemporais que orientam a vida.
A Guerra Interior na Bhagavad Gita
A Bhagavad Gita é a grande epopeia guerreira da cultura da Índia, narra a história do grande guerreiro Arjuna que recebe as orientações do seu mestre Krishna durante a batalha pela disputa de Hastinapura.
Desde um ponto de vista antropológico, podemos entender a história humana dividindo-a em três estágios: o selvagem, o bárbaro e o civilizado, sendo que as artes da guerra e a própria guerra surgem e são necessárias nos períodos mais duros de selvageria e barbárie.
A guerra em termos práticos implica destruição, morte e sofrimento. Tem uma relação direta com os nossos instintos mais primitivos, de sobrevivência, sendo sempre a última hipótese e consequência, vai acontecer quando for necessária uma mudança drástica das formas, com uma mudança total da forma que se têm no momento, que, esta sim, irá morrer, ser destruída para renascer num novo formato, dando assim uma oportunidade para que a vida se expresse novamente, mas num novo ciclo, agora um pouco mais próximo da sua verdadeira essência.
A Guerra torna-se necessária quando o reino do homem está corrompido pelos defeitos, quando a maldade impera sobre o que é belo, bom, justo e verdadeiro. Nesta circunstância a guerra externa tem de acontecer para que a vida possa voltar ao seu equilíbrio, este mecanismo funciona assim porque perante o mal, o corrupto, o injusto, não existe negociação, e somente uma reta e firme força de vontade o pode eliminar.
A Bhagavad Gita oferece-nos uma perspectiva diferente, eleva este conceito da guerra para um local mais nobre, relacionado com o espiritual, com a nossa vida interior, com o nosso conflito interno diário, a fim de nos alinharmos com o elemento espiritual que possuímos dentro de nós, elemento esse que em última instância é aquilo que verdadeiramente somos.
Através da contínua luta interior, da nossa parte luminosa contra a sombra que constantemente procura dominar as nossas ações, somos capazes de desenvolver o melhor em nós, somos capazes de compreender a vida com a profundidade adequada daqueles que buscam ser, a cada dia, um pouco mais virtuosos, mais valentes, mais generosos e bondosos, dando assim às suas vidas um sentido e uma razão próprios dos que sabem que, para que algo de bom surja, é necessário esforço, é necessário erradicar no campo de batalha os fatores que impedem o crescimento do que realmente importa.
Viva a guerra interior, esta tão mágica e bela experiência que permite que a todo o momento sejamos capazes de desenvolver o nosso melhor, que nos dá a oportunidade de enfrentarmos o nosso maior inimigo: nós mesmos, que permite que pouco a pouco nos possamos forjar a nós mesmos e aproximar cada vez mais da divindade que temos em nós.
“Heroísmo, coragem, firmeza, resolução, sagacidade, impavidez no combate, generosidade e domínio próprio, tal é o Karma dos guerreiros, de acordo com a sua natureza.
O homem que se aplica com alegria ao seu próprio Karma, qualquer que este seja, alcança a perfeição, escuta agora como alcança a perfeição aquele que se atém ao seu Karma.
Venerando, através do cumprimento de seu próprio Karma, aquele do qual emanaram todos os seres e que preenche todo o Universo, o homem alcança a perfeição.”
Krishna, Bhagavad Gita
Esses ensinamentos foram cruciais em minha jornada para entender de onde vinham todos os problemas que me atingiam e que eu ignorante punha a culpa nos outros ou em deus