Nas primeiras horas da manhã, o Imperador Akbar acordou com o doce e melodioso canto de Haridas, guru do célebre cantor da sua corte, Tansen. Haridas estava a cantar um raga matinal. Sobrecarregado, Akbar perguntou porque Tansen não era capaz de cantar como o seu guru Haridas. Tansen respondeu que havia uma grande diferença entre ele e o seu professor; enquanto ele cantava para o seu senhor Akbar, O Grande, Haridas cantava para o Senhor do universo – Deus.
Tansen refere-se ao elemento devocional que eleva a arte de Haridas a uma experiência superior, o reino do divino, do eterno e do infinito que comove a alma. Este aspeto da devoção inspirou os antigos artistas indianos em todos os géneros e pode ser visto em várias expressões da dança, da poesia, da música, da arquitetura e da pintura. Ao fazê-lo, é evidente que os antigos artistas indianos aspiravam capturar, deliberadamente, o invisível e o ilimitado através de meios visíveis e limitados, criando, portanto, uma ponte entre o amorfo e a forma. A devoção de que estamos aqui a falar não é para com um deus pessoal ou entidade religiosa, mas sim para com o divino que representa o Ideal, o Absoluto.
A Devoção é uma forma de amor, uma poderosa força de atração que nos impulsiona para frente, não com crença cega, mas com uma convicção que vem da experiência em primeira mão, do saber. Note-se que o objeto desta forma única de amor não precisa de ser tangível nem quantificável. Ela alimenta o artista que está num caminho interminável que leva ao Mistério para capturar uma compreensão mais profunda e cada vez mais precisa do arquétipo da Beleza. Portanto, a devoção é uma chave que permite ao aspirante passar do que é conhecido e familiar para o reino do desconhecido, do ilimitado e eterno.
O Dr. Anand Kentish Coomaraswamy disse que a arte indiana é essencialmente religiosa, acrescentando que o objetivo consciente da arte indiana era a imitação da Divindade. O grande desafio, portanto, era expressar em termos finitos a natureza Infinita e Incondicional do Divino. Sankaracarya rezava: “Ó Senhor, perdoa os meus três pecados: em contemplação, vesti-Te com forma, que não tens forma; em louvor, descrevi-Te, que transcendes todas as qualidades; e visitando santuários, ignorei a Tua omnipresença”[1].A aspiração consiste em tocar no arupa, o intangível, utilizando meios tangíveis. Por isso, a arte pela arte era desconhecida na Índia.
Devemos observar a qualidade holística da arte indiana; uma unidade de muitas formas e experiências artísticas. Seja ela pintura em miniatura, música ou templos de rocha cortada, cada um é um testemunho da força de devoção e da persistência do artista. A Dra. Annie Besant afirma belamente: “A arte indiana é o florescimento de uma árvore da Sabedoria Divina, cheia de sugestões de mundos invisíveis, esforçando-se por expressar o indescritível, e nunca pode ser percebida apenas pelo emocional e pelo intelectual; apenas na luz do espírito pode o seu significado interior ser vislumbrado”[2]. Daí resulta que um verdadeiro artista deva deliberadamente tentar garantir que a sua arte não se torne numa expressão das suas opiniões, pensamentos e sentimentos, uma vez que estes apenas adulterariam e limitariam o princípio infinito da Beleza, tornando-a subjetiva e parcial. Ao contrário, a sua arte deve funcionar como um canal através do qual se captura e transmite, objetivamente, o princípio da Beleza.
Diz-se, portanto, que muitos artistas indianos antigos nunca se viram como os criadores da sua arte. Inúmeros artistas anónimos trabalhavam, frequentemente, juntos numa única obra de arte. Eles não assumiam a propriedade das suas criações, as quais tinham o propósito de ser oferendas. Em vez disso, o próprio artista não era importante; era um humilde canal de transmissão, enquanto o Divino era o único criador verdadeiro.
Tão influente foi este aspeto devocional, também no reino da poesia e da literatura, que todo um género conhecido como movimento bhakti se desenvolveu para celebrar esta devoção, numa entrega ao divino quase numa espécie de transe, que às vezes era referido com um professor, às vezes como um pai, e outras vezes até como um amante. Através do movimento bhakti vemos poetas a procurar o misterioso, o belo e o sagrado. Talvez, um dos exemplos mais proeminentes desse movimento seja o poeta do século XV, Kabir, que escreveu belos dohas, versos, para exemplificar sua devoção.
O que se vê não é a verdade.
O que é, não pode ser dito.
A confiança não vem sem a visão,
Nem a compreensão sem palavras.
O sábio compreende com conhecimento.
Para o ignorante é apenas uma maravilha.
Alguns adoram o Deus sem forma,
Alguns adoram as Suas várias formas.
De que maneira Ele está além destes atributos? Apenas o conhecedor sabe.
Essa música não pode ser escrita,
Como podem então ser as notas?
Diz Kabir, só a Consciência superará a ilusão.
Também no género da dança, vemos que todos os sistemas clássicos se destinavam a ser como oferendas, apresentados exclusivamente em templos, como forma de imitar a divindade reinante e de canalizar os seus arquétipos associados através de movimentos e sentimentos. O Templo Thillai Nataraja, do século XII, em Chidambaram (Tamil Nadu), retrata esculturas em 108 poses do Bharatanatyam, primorosamente esculpidas em painéis retangulares. Além disto, os 18 braços da escultura central de Nataraja expressam os mudras do Bharatanatyam, como se a linguagem da dança fosse usada para alcançar o que a divindade representa.
Por ocasião do Dia Mundial da Filosofia, a expoente da dança Mohini Attam, Miti Desai, cita as escrituras para descrever a sua própria compreensão do papel da dança: “Do amorfo vem a forma, e a forma leva-nos de volta ao amorfo.” Ela explica que a dança clássica indiana é uma escada que pode dar-lhe um vislumbre do amorfo, se alguém se atrever a subir os seus degraus. Tradicionalmente, a dança é conhecida como Brahmananda-sahodara, o irmão gémeo do próprio Brahma, o Criador.
Culturas antigas propuseram uma variedade de técnicas para canalizar a divindade nas nossas vidas. O Antigo Egito fala do conceito de Ma’at – fazer justiça na vida, ousando cumprir o próprio potencial; ou pode-se dizer, na tradição indiana, concretizar o Svadharma. De forma similar, o Buda prescreveu o caminho óctuplo.
Essencialmente, estas são maneiras diferentes de falar sobre viver a vida como um filósofo, que as tradições clássicas parecem oferecer universalmente. Às vezes pergunto-me: e se nós também pudéssemos ansiar pela beleza nas nossas próprias vidas, como os antigos artistas faziam? Será que há uma maneira de fazer das nossas próprias vidas obras de arte? Ao usar as nossas vidas como uma tela, e as virtudes como a nossa paleta de cores, cada pessoa tem o potencial para se tornar no artista da sua própria vida. Ao invés de exercitarmos as nossas cordas vocais e de praticarmos as notas musicais, podemos fazer o nosso riyaaz, a nossa prática diária, praticando virtudes para revelar a beleza e a ética que residem nos nossos corações. Talvez pudéssemos usar a inspiração dos antigos artistas para viver a vida com devoção à Verdade e à objetividade, para além do ego e das opiniões ou crenças subjetivas que causam a separação. Talvez possamos ser movidos por uma devoção à Verdade, e cumprir um propósito, para nos tornarmos um canal de beleza e de bondade.
[1] Coomaraswamy, Ananda K. Essays on National Idealism. Munshiram Manoharlal Publishers. 1981.