A Afeição – Comentário ao capítulo XVI do Dhammapada

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Aquele que se entrega a distrações inconvenientes, e não a uma reflexão adequada, renuncia ao seu próprio bem-estar. Procurando prazeres, ele inveja o homem que se dedica à meditação. (209)

Não se apegue ao agradável, nem ao desagradável. Ver o agradável implica ver o desagradável − ambos são dolorosos. (210)

Portanto não seja atraído para coisa alguma. A perda de um objeto amado é dolorosa, mas não há prisão para aquele que não gosta nem desgosta. (211)

Se cada um de nós é um indivíduo, ou seja, um ser uno e indivisível, e se a realidade é, também ela, una e indivisível, talvez possamos recorrer à geometria euclidiana para traçar uma linha entre estes dois “pontos” como sendo o caminho mais rápido para os unir. Este caminho recebeu muitos nomes, tantos quantos os mestres que o percorreram, mas na língua sânscrita chamaram-lhe Dharma. Poderíamos traduzir Dharma como “lei”, mas também “virtude”, “dever”, ou “característica essencial de um ser”. No fundo, o caminho que o leva ao encontro da sua essência mais íntima.

Desde que acordamos, tentamos percorrer esse caminho estreito, mas como sabem todos os que procuraram equilibrar-se em cima de uma bicicleta, não é fácil manter um rumo perfeitamente reto. Existem vários estímulos que prendem a nossa atenção, estímulos que poderíamos classificar como agradáveis ou desagradáveis, ou talvez, atrativos ou repulsivos. Poderíamos cair no erro de pensar que o rumo certo seria aquele que se aproximasse cada vez mais do atrativo e se afastasse do repulsivo, mas este não é o caso, pois ambos são como o vento que sopra numa ou noutra direção, o que nos dificulta a retidão no caminho.

Por acaso conseguimos avançar se estivermos apegados aos objetos da paisagem? Verdadeiramente, não, mas se ainda assim a vida nos impulsionar para a frente, encontraremos apenas o sofrimento causado pela separação forçada. Sermos afastados do agradável, causa sofrimento, mas então e o desagradável? A mesma identificação que nos ata ao agradável, também nos prende ao desagradável, e é aí que reside o verdadeiro problema, nas ataduras, no próprio apego.

Do apego surge o sofrimento. Do apego surge o medo. Não há sofrimento para aquele que está livre do apego. De onde, então, poderia surgir o medo?

Do afeto surge o sofrimento. Do afeto surge o medo. Não há sofrimento para aquele que está livre do afeto. De onde, então, poderia surgir o medo?

Da indulgência surge o sofrimento. Da indulgência surge o medo. Não há sofrimento para aquele que está livre da indulgência. De onde, então, poderia surgir o medo?

Do desejo surge o sofrimento. Do desejo surge o medo. Não há sofrimento para aquele que está livre do desejo. De onde, então, poderia surgir o medo?

Da cobiça surge o sofrimento. Da cobiça surge o medo. Não há sofrimento para aquele que está livre da cobiça. De onde, então, poderia surgir o medo?

(Versos 212 a 216)

Do apego, do afeto, da indulgência, do desejo e da cobiça surge o sofrimento, pois todos eles são formas de identificação com aquilo que é irreal e passageiro e, por isso, condenado a desaparecer e a deixar sofrimento na sua passagem. Se crio apego, inevitavelmente irei sofrer. Ou porque tenho e temo perder, ou porque não tenho e quero ter. Se tenho preferências, passa-se o mesmo. Se procuro prazeres sensoriais, também. Inevitavelmente irão desaparecer. O mesmo com o desejo e com a cobiça. O medo segue cada um destes inimigos como uma sombra.

Todos gostam de alguém que possui virtude e uma visão clara das coisas, que vive com base na Lei, que é sincero e cumpre as suas próprias obrigações. (217)

Existe algo em nós que reconhece a virtude quando ela se expressa, tanto em nós como nos outros. Somos naturalmente atraídos pela bondade, beleza, justiça e verdade, para nomear alguns exemplos, e por isso é que procuramos vivê-las e expressá-las através das nossas ações. Poderíamos pensar que estes reflexos dos grandes arquétipos são atributos culturais e passageiros, que se não forem impostos pela educação, não se expressam na sociedade; poderíamos até apoiar-nos na existência de povos que praticaram canibalismo, infanticídio, etc., mas não é por cometerem tais atos que não preferiam a verdade à mentira, a gentileza à violência, o bem em vez do mal.

Esta atração pelo superior, pelo real, expressa-se também na capacidade de o reconhecer. Quem vê melhor, mais longe, quem possui a bússola interna que lhe permite discernir o certo do errado, normalmente é procurado para apontar a direção no meio de tantas incertezas. É como um farol que chama todos aqueles que estão perdidos na escuridão, e a sua presença é muito valorizada. No entanto, não basta ver e apontar, há que ter a vontade e determinação para caminhar nessa direção, e manter-se no rumo, por maiores que sejam as provações. Aquele que consegue preencher estes requisitos, ele sim, é um líder de homens, raro e precioso.

Daquele em quem surgiu o desejo pelo inefável, cuja mente está permeada por este desejo, e cujos pensamentos não são distraídos por desejos inferiores − dele se diz que “vai contra a corrente”. (218)

Existe um tipo de desejo que é superior aos gostos mundanos. É um desejo impessoal, quase magnético, a mesma atração que já falámos em relação às virtudes. Quem é atraído pelo inefável, o indescritível, Deus, se quisermos, e cuja mente não vacila e não tropeça, mantendo-se focada na meta, de alguém assim podemos dizer que não é arrastado pela corrente do mundo, e em vez disso, navega em direção à Origem de tudo. Esta é a mesma corrente que prende o homem na ciclicidade do dia a dia, das semanas, dos anos, da própria vida, como um carrossel que só percebemos que anda à roda quando nos recordamos de ter visto a mesma paisagem duas vezes. Toda a natureza manifestada expressa esta ciclicidade, mas há algo no ser humano que anseia por sair do carrossel, que o chama para o centro da roda, o centro onde não existe movimento.

Assim como um homem que volta em segurança − depois de passar muito tempo longe − recebe as boas-vindas da família, de amigos e pessoas de boa vontade, assim também as suas próprias boas ações dão as boas-vindas a aquele que deixa a vida mundana e alcança um plano superior. De facto, as suas boas ações são a sua família. (219-220)

Toda a ação gera uma reação, e isto é verdade em todos os planos. Usando a ferramenta da analogia, uma pedra atirada para o centro do lago gera ondas não só na água, mas também no ar, na luz refletida, na lama do fundo. Assim é no plano que poderíamos chamar de físico, mas também nos outros planos “invisíveis” onde o homem opera. Um sentimento é uma ação. Um pensamento também. Ambos geram reações adequadas. E são estas reações que verdadeiramente nos acompanham e que nos recebem uma e outra vez. Quanto melhores forem as nossas ações, melhor será a família de reações que nos recebe de volta a casa.

João Pedro Pio

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